O cinema nacional entrou em êxtase com o badalado Ainda Estou Aqui. Sempre que algo ganha holofotes e está em evidência em grandes meios, temos a precaução de colocar um pé atrás em relação à obra. É natural e um sistema de defesa. Porém, independente das gigantes mídias, do Globo de Ouro (merecidamente ganho por Fernanda Torres) e por ser o assunto do momento, neste janeiro de 2025, o filme dirigido por Walter Sales é preciso. Trata-se de uma obra que cola luz nos tempos sombrios da ditadura militar no Brasil.
Ainda Estou Aqui é mais do que um mero filme, ou uma discussão entre periferia e classe média, é uma jornada pela vida, pela memória e pela busca por identidade, respostas e dar nomes aos bois do estado. Através dos olhos de Eunice Paiva, personagem vivida por Fernanda Torres com uma intensidade que nos convida a refletir sobre nossas próprias existências. Somos levados a questionar o passado, o presente e o futuro. A história, marcada por perdas e reencontros, nos faz rir e chorar, celebrar e lamentar. Baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, publicado em 04 de agosto de 2015 pela editora Alfaguara.
O livro, e consequentemente o filme, aborda o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, um nome que ecoa na história do Brasil. Paiva foi um político brasileiro que teve sua vida marcada pela luta pela democracia. Eleito deputado federal em 1962, tornou-se uma voz ativa contra o autoritarismo e a corrupção, participando de CPIs e fazendo discursos inflamados em defesa da legalidade. Com o golpe militar de 1964, seu mandato foi cassado e ele foi exilado. Apesar de ter retornado ao Brasil, sua vida nunca mais foi a mesma. Rubens Paiva foi preso e torturado pela ditadura militar, e seu corpo nunca foi encontrado. Sua história, marcada pela coragem e pela resistência, tornou-se um símbolo da luta contra a ditadura militar e um lembrete da importância de defender os direitos humanos e a democracia.
O desaparecimento de Rubens Paiva deixou um vazio imenso na vida de sua família. Marcelo Rubens Paiva, em sua obra, explora as diversas nuances dessa perda, desde a dor da infância sem o pai até a luta incansável de sua mãe por justiça. O livro também mergulha nas questões políticas e históricas que cercam o desaparecimento de Rubens Paiva, revelando um Brasil marcado pela violência e pela repressão. E é nessa pegada que o filme do premiado Walter Sales (Diários de Motocicletas, de 2004, narra as aventuras do jovem Che Guevara pela América do Sul) nos mostra o vazio da família Paiva e mantém o foco na força de Eunice Paiva, a esposa de Rubens. A protagonista é uma mãe forte e determinada, que luta para manter viva a memória do marido e proteger seus filhos.
O filme Ainda Estou Aqui recebeu diversas críticas positivas, seja pelas excelentes atuações, como a de Fernanda Torres, Selton Melo ou das crianças presentes na obra, seja pela exímia fotografia, excepcional roteiro ou pela acertadíssima escolha da trilha sonora. E é aqui que aterrizamos com uma lupa para linkar as músicas contidas no filme com o rap.
As canções em Ainda Estou Aqui nos transportam para um Brasil pulsante, repleto de contradições e resistências. A seleção musical, que abarca nomes como Tim Maia, Tom Zé, Gal Costa, Roberto Carlos e Caetano Veloso, dialoga de forma rica com a história e a cultura do país. Mas como essa sonoridade se relaciona com o rap, um gênero musical que emergiu décadas mais tarde?
Uma ponte comum é a abordagem das lutas sociais. Tanto o rap quanto as músicas da época retratada em Ainda Estou Aqui possuem forte texto de protesto. A voz de nomes como Caetano Veloso, Tom Zé, Gal Costa e Gil, por exemplo, encontra eco no rap, que sempre usou seu ritmo e poesia para denunciar as desigualdades e as injustiças.
A percussão marcante e os ritmos sincopados presentes em muitas das músicas da trilha sonora de Ainda Estou Aqui dialogam com as batidas e os flows do rap. A música negra, presente tanto no samba quanto no funk, é uma base comum para ambos os gêneros. Tudo nasce na África e tudo volta para lá.
Em uma rápida passagem pela lista de músicas do filme, temos:
"A Festa Do Santo Reis" - Tim Maia: A energia contagiante e a letra festiva de Tim Maia, de certa forma, foram precursoras da alegria e da celebração da vida que permeia muitas letras do rap brasileiro dos anos 80. Aliás, a obra de Tim Maia está presente em muitos raps do Brasil através do sample.
"Jimmy, Renda-Se" - Tom Zé: A experimentação sonora e a busca por novas linguagens presentes em Tom Zé podem ser comparadas à busca por novas sonoridades e flows que caracteriza o rap. Em seu álbum de 2017, Galanga Livre, o rapper Rincon Sapiência sampleou a canção de Tom Zé em "Crime Bárbaro".
"É Preciso Dar Um Jeito, Meu Amigo" - Erasmo Carlos: A mensagem de esperança e união presente nessa canção encontra sinergia em muitas letras de rap que buscam mobilizar as pessoas para a luta por um mundo mais justo. Erasmo também é comumente sampleado no rap nacional, como por exemplo a música "O Show Já Terminou", de Doncesão com participação de Rodrigo Ogi e Rodrigo Brandão (2011), o sample vem da música de mesmo nome de Erasmo Carlos, lançada em 1974.
"Acaua" e "Falsa Baiana" - Gal Costa: A força da voz de Gal Costa e a sensualidade da música podem ser comparadas à voz que se tornou marcante em muitas MC's do rap brasileiro. Um sample marcante de Gal Costa em nosso rap é a música “Eu Sou + Eu”, do grupo Clã Nordestino que usa amostra de "Coração Vagabundo", em letra de Maria Bethania, interpretada pela Gal.
"Fora Da Ordem" e "Um Indio Live In Brazil" - Caetano Veloso: A crítica social e a busca por uma nova ordem presente nessa canção encontram paralelos nas letras engajadas de muitos rappers brasileiros. Caetano é outra figurinha carimbada no rap, não só brasileiro, mas internacional. O rapper estadunidense Ghostface Killah, em 2006, usou na música "Charlie Brown" sample de "Alfomega" lançada em 1969 por Caetano. Já a música "Alegria, Alegria", de 1967, foi usada por Ndee Naldinho em "Essa é Lei (Tributo a Um 171) e por MV Bill em "Eu Vou". Emicida e Rael usaram em "Outras Palavras", em 2009, sample de "Outras Palavras", 1981. Em 2015 o poeta do rap nacional, o GOG, sampleou "Tropicália", de 1967, na canção "O Buquê De Espertirina". Importante também citar a dobradinha entre Caetano e Rappin Hoo no álbum Sujeito Homem 2, lançado pelo MC paulista em 2005, onde a faixa "Rap Du Bom - Parte II" tem a presença do baiano e o refrão de "Odara", de 1977.
"Baby" - Mutantes: Esse é um clássico da música brasileira e faz uma ponte com uma nova geração de ouvintes. Sua utilização pela banda Guta Naki, que não é um projeto de rap, mas que bebe das fontes da música digital em uma espécie de MPB 2.0, demonstra a conexão entre a psicodelia brasileira e o experimentalismo que também pode ser encontrado em algumas vertentes da música moderna. Com mais de 10 anos de estrada, Guta Naki não é uma banda novata, a experimentação foi utilizar o sample de "Baby" na canção "O Homem Que Dança".
"Petit Pays" - John Forté: Indoa para as canções internacionais da trilho sonora do filme, temos "Petit Pays" de Cesária Évora, canção que foi sampleada por John Forté, Destruct e Fat Joe no rap "They Got Me", a segunda faixa do disco Poly Sci, de 1998. Já a versão original foi lançada em 1995 no disco Cessária.
"The Ghetto" - Donny Hathaway: Um campeão no uso de samples. Esse é um excelente exemplo de como uma música pode ser revisitada e reinterpretada por diferentes artistas ao longo do tempo. A utilização de "The Ghetto", lançada em 1969 em disco homônimo, por diversos rappers demonstra a longevidade e a influência dessa canção na cultura Hip Hop. A música "The Ghetto" foi sampleada por Public Enemy em "Leave This Off Your Fuckin Charts"; por Dr. Dre, Snoop Dogg e Daz Dillinger no remix de "Lil' Ghetto Boy"; por Jeezy e E-40, em "Da Ghetto"; por Chief Keef em "Lamb Pass By"; pelo DJ Aladdin, em "Jack Move"; pelo grupo The Together Brothers, em "The Ghetto"; e pela dupla Thiago & Breve em "Raspberries".
"Je T'aime Moi Non Plus" - Serge Gainsbourg Et Jnae Birkin: A sensualidade e a atmosfera provocante dessa música podem ter influenciado a criação de canções de rap com temáticas relacionadas ao amor, desejo e relações. Mas uma utilização da melódia dessa música foi feita pelo grupo Face da Morte em "A Cor dos Anjos", de 2020, com o piano eletrônico sendo substituído por violão e o baixo e bateria sendo executados de forma orgânica.
Ainda temos "Alexander", de Philip May, Alan Walker, Richard Taylor Clifford e John Povey; "The Fight", de Johann Johannsson; "As Curvas Da Estrada De Santos" e "Como Dois E Dois", de Roberto Carlos; "Agoniza Mas Não Morre", de Nelson Sargento; e "Take Me Back To Piaui", do Juca Chaves. Músicas com melancolia e a saudade expressas que podem ser encontradas em diversas canções de rap, especialmente aquelas que abordam temas como a nostalgia e a busca pelas raízes. A força e a resistência presentes nessas letras, com certeza, influenciou divresos rappers que abordam temas sociais e a luta por justiça, assim como a atmosfera intensa e dramática que sempre é matéria prima para a criação de beats inspiradores.
A trilha sonora de Ainda Estou Aqui, um marco na luta contra a ditadura militar, e o rap, um gênero musical profundamente enraizado nas realidades sociais e nas vozes marginalizadas, estabelecem uma conexão profunda e significativa. Ambos os elementos artísticos compartilham a capacidade de dar voz aos oprimidos, denunciar injustiças e inspirar a resistência. As melodias e letras da trilha sonora, que ecoam a dor, a esperança e a luta contra a opressão, encontram um eco potente nas rimas e batidas do rap, que frequentemente abordam temas como desigualdade, racismo e a busca por justiça. Assim, a trilha sonora de "Ainda Estou Aqui" não apenas serve como um registro histórico, mas também como uma fonte de inspiração para as novas gerações de artistas e ativistas, que continuam a utilizar a música como ferramenta de transformação social. Cabe aos novos artistas revisitar o vasto baú da nossa raíz musical. A conexão entre essas duas formas de expressão artística demonstra que a música, em suas diversas manifestações, possui o poder de unir pessoas, desafiar o status quo e construir um futuro mais justo e igualitário.
As canções do filme, ao dialogar com a história e a cultura do Brasil, estabelecem pontes com o rap. Ambos os gêneros, apesar de pertencerem a épocas e contextos diferentes, compartilham raízes comuns, linguagens e temáticas. Essa conexão demonstra a riqueza e a diversidade da música brasileira, que continua a se reinventar e a se transformar ao longo dos anos.
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