Nos anos 90, o Brasil fervilhava com movimentos musicais que não apenas reinventaram os sons regionais, mas também consolidaram rivalidades acirradas no cenário cultural. Enquanto o Brasil dançava ao som das batidas ensolaradas da Axé Music, dominado por nomes como Carlinhos Brown, Daniela Mercury e o Olodum, uma revolução surgia nas margens enlameadas de Recife, o Manguebeat, liderado por Chico Science e Nação Zumbi. Dois movimentos culturais que representaram dois mundos aparentemente incompatíveis.
Enquanto a música dos mangues pernambucanos emergia das raízes do maracatu e do funk, soul e Hip Hop para criar uma sonoridade urbana e crítica, o Axé Music exaltava a percussão vibrante e a celebração das festas baianas. A tensão entre os dois estilos, embora nunca formalizada, deixou marcas profundas em episódios emblemáticos e em suas respectivas histórias.
A Disputa pela Origem das Batidas
O nome de Carlinhos Brown era usado para gerar desconforto entre os músicos do Manguebeat. Por exemplo, na quinta-feira, 31 de março de 1994, o jornal Folha de S. Paulo publicou uma entrevista com Chico Science. O jornalista Luís Antônio Giron perguntou:
"Você acha que está em moda ao adotar o nome Chico Science? É síndrome de Carlinhos Brown?"
Chico responde sem titubear: "Não. Um amigo meu do movimento, Renato Lins, me chamou de Science porque eu sempre gostei de mexer com a alquimia dos sons. Me acostumei e é legal porque fica mais universal por ser em inglês. A gente chama o pessoal de mangueboys e manguegirls."
A rivalidade ganhou corpo em 1997, pouco antes da morte de Chico Science, quando Carlinhos Brown fez uma declaração controversa. Segundo ele, "o movimento percussivo iniciado por mim na Bahia influenciou todos os músicos que surgiram nesses últimos anos, o manguebeat de Chico Science, por exemplo, é todo elaborado em cima da batida dos blocos afro de Salvador." O comentário foi recebido com indignação pelos músicos do Manguebeat, que viam no movimento baiano um ponto de inspiração, mas não a essência de sua criação.
De fato, o Manguebeat incorporava elementos dos blocos afro soteropolitanos, como Ilê Aiyê, Muzenza e Olodum, mas sua base estava profundamente enraizada no maracatu de baque virado, uma tradição pernambucana. A primeira batida que definiria o Manguebeat foi criada por Maureliano, o Mau, um dos fundadores do grupo Lamento Negro, que mais tarde evoluiria para a Nação Zumbi. A fusão dessa batida combinava células de maracatu com influências do funk de James Brown e do rap estadunidense, criando um som único que Chico Science popularizou em faixas como "A Cidade."
Um episódio sintetiza a treta entre o Manguebeat e a Axé Music. Em 1997, em decorrência da morte de Chico (em 02 de fevereiro, em um acidente de carro na estrada que liga Olinda a Recife) deflagrou outra cizânia. No enterro, os músicos da Nação Zumbi cuidaram de destruir a coroa de flores enviada por Carlinhos Brown. Esse evento simboliza a intensidade dessa tensão. A alegação de influência direta parecia desconsiderar a complexidade criativa e as raízes do Manguebeat, ferindo o orgulho dos músicos pernambucanos.
Montreux 1995: Constrangimento no Palco
Outro episódio emblemático que ressalta essa incompatibilidade aconteceu no Festival de Montreux, na Suíça, em 1995. A Noite Brasileira foi dominada pela música baiana, com apresentações de Timbalada, Banda Mel, Olodum e Asa de Águia. Nesse contexto, Chico Science & Nação Zumbi foram alocados na mesma programação, criando um contraste evidente.
A tentativa de unir as duas vertentes culminou em um momento constrangedor. Durante a apresentação da Nação Zumbi, músicos da Timbalada subiram ao palco sem aviso prévio para uma participação improvisada. O resultado foi uma performance sem sintonia, onde os batuques do maracatu se chocaram com a percussão baiana, gerando desconforto entre os membros da Nação Zumbi e deixando claro que os dois estilos não se encaixavam.
José Teles, em seu livro Criança de Domingo - Uma Biografia Musical de Chico Science (Editora Belas Letras, 2024) conta que o então empresário de CSNZ, o Paulo André, costumava assistir aos shows da banda da plateia, para conferir a performance dos músicos, e nesse evento voltou ao camarim durante as últimas músicas e se deparou com algo minimamente bizarro:
"Quando fui para o camarim, me deparei com uns 20 a 25 caras da Timbalada daquele jeito que aparecem nas capas do disco, nus da cintura pra cima, com aquelas pinturas brancas no corpo, cada um com sua percussão pendurada. Eles tocam em pé, todos com instrumentos musicais na mão. Perguntei ao empresário o que era aquilo. Ele disse que trouxe pra fazerem uma participação. Eu disse que não estava combinado. Ele disse que era bom juntar as bandas brasileiras. Eu não tinha como expulsar 20, 25 caras. Todos olhando pra mim. Me abaixei e cheguei pro palco, o roadie Berg estranhou, fui para trás de um amplificador e chamei Lúcio. Disse a ele que a Timbalada estava para entrar. Ele disse um não. Lúcio foi dizer a Chico, que olhou pra mim como quem diz o 'que é isso? Nisso os caras da Timbalada já estavam passando por trás e entrando no palco, um cara já pegou o microfone e começou a cantar aquelas coisas de axé. A banda sem tesão nenhum, uma coisa muito constrangedora. Um momento musicalmente constrangedor, porque a Nação não queria, tocou com má vontade. Musicalmente nem tinha nada combinado, nem nada a ver uma coisa com a outra, os tambores com os outros."
Diferenças Estéticas e Ideológicas
Além da musicalidade, as diferenças entre os dois movimentos eram marcantes em suas propostas culturais. O Manguebeat surgiu como uma resposta à marginalização das periferias urbanas, combinando crítica social com experimentalismo musical. Já o Axé Music, com seu apelo popular e festivo, representava uma celebração mais leve e comercializada da cultura brasileira.
Quem influenciou Science e o movimento Manguebeat foi Brown, mas não Carlinhos, e sim James Brown com seu funk e soul. O Brown que Chico revelou curtir é Mano Brown, em entrevista à Folha de S. Paulo em 1993 o pernambucano não citou o rapper, mas sim o grupo Racionais, disse que estava curtindo o novo álbum dos paulistas (Raio-X do Brasil). Ainda nos anos 80 Chico curtia Afrika Bambaataa, Kurtis Blow, Grand Master Flash e Thaíde & DJ Hum, além da banda Ira! Tudo isso culminou no que viria a ser Chico Science e Nação Zumbi.
Essa polarização também era visível no Recife, onde o sucesso do Axé Music dividia o público. Enquanto alguns aderiam às festas de abadá e às transmissões na TV, os mangueboys cultivavam um orgulho pela autenticidade de sua música, rejeitando a estética "descartável" que associavam ao Axé.
Paulo André Pires, empresário de Chico Science, enfrentou situações embaraçosas devido a essas diferenças. Um exemplo foi o convite de Daniela Mercury para que Chico participasse de seu trio elétrico. Ao repassar a proposta, Chico rejeitou de forma categórica, afirmando que não tinha interesse em se alinhar ao universo do Axé.
A Influência Duradoura
Apesar das tensões, é inegável que ambos os movimentos marcaram profundamente a música brasileira. O Axé Music consolidou o Brasil como potência cultural internacional, enquanto o Manguebeat deixou um legado de inovação e resistência, inspirando gerações de artistas.
Essa dualidade refletia um Brasil dividido: o das micaretas e o das manifestações culturais que desafiavam o status quo. O Axé Music dominava rádios e avenidas, mas o Manguebeat conquistava corações e mentes com sua proposta de transformação. Não era sobre dançar até o amanhecer, mas sobre acordar para a realidade.
Hoje, a rivalidade é um marco de uma época em que duas forças culturais colidiram, cada uma defendendo seu território e sua visão de mundo. O legado do Manguebeat vai além do som: é a prova de que, mesmo na lama, podem nascer flores.
Essa rivalidade, em última análise, não deve ser vista apenas como um confronto, mas como uma expressão da riqueza e da diversidade da música brasileira nos anos 90. A disputa entre o Manguebeat e o Axé Music revelou que, mesmo em suas diferenças, os dois movimentos contribuíram para a construção de uma identidade cultural plural e vibrante.”
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