O álbum Hip Hop Cultura de Rua, lançado em 1988 pela Gravadora Eldorado, representa um marco fundamental na história do rap brasileiro. Reunindo alguns dos principais nomes da cena da época, o disco traçou um panorama do Hip Hop nacional em seus primórdios, com letras que abordavam a realidade das ruas e a luta por reconhecimento.
Uma Produção Colaborativa
A coletânea era para ser um disco do grupo O Credo, formado pelo MC Who e o DJ Uzi, no entanto o duo não tinha faixas suficientes para fechar o álbum. A saída foi de Ruberval (o MC Who) dividir o espaço conquistado com outros artistas que ferquentavam a Estação São Bento, um dos berços do Hip Hop na capital paulista. Desse modo, Thaíde & DJ Hum, MC Jack, Código 13 e O Credo integraram a primeira coletânea de Hip Hop do país.
A obra teve produção dividida entre diversos nomes, cada um com sua própria sonoridade e identidade. Destacam-se Nasí e André Jung, Beto Firmino responsavéis pela produção das duas canções de Thaíde & DJ Hum. Nasí e André Jung já tinha experiência no cenário usical enquanto integrantes da banda Ira! e trouxeram um som mais elaborado e polido para o álbum.
Dudu Marote, que mais tarde fez muito sucessso produzindo a banda mineira Skank,produziu as faixas de MC Jack e da banda Código 13. Marote chegou com uma sonoridade mais crua e street, representando a essência do Hip Hop underground da época, menos festivo do que os similares do mesmo período.
Por fim, Akira S, à época aà frente da banda Akira S & As Garotas Que Erraram, que tinha uma pegada pós-punk e fora formada em 1984. Com sua bagagem em música eleltrônica, Akira ficou responsável pelas faixas "O Credo" e "Deus da Visão Cega", as quais trouxe um toque mais experimental e introspectivo para o álbum.
Artistas e Suas Contribuições
O álbum contou com a participação de diversos MCs, cada um com seu estilo único. Thaide & DJ Hum, a dupla mais conhecida do disco, chegou com as canções "Corpo Fechado" e "Homens da Lei", faixas que abordavam temas como a luta pela sobrevivência, crítica social e a repressão policial. Alías, "Homens da Lei" é o primeiro rap nacional a abordar a violência imposta pela policia. No ano de 2020 o grupo Facção Central regravou a música em seu àlbum Inimigo Nº1 do Estado.
A banda Código 13, formada em 1987, com MC Koryac, DJ Def Kid e Eduardo, D e Black J. As letras engajadas e o flow marcante trouxeram para o disco um olhar crítico sobre a realidade das ruas. Foi na faixa "Código 13" (O Tema) que a farse: "Escutar o Hip Hop é coisa normal, entender o Hip Hop é onde está o mal!", que foi sampleada e repetidas em diversas músicas, como em 1998 no ánum Eu Tiro É Onda, na canção homônima, de Marcelo D2.
MC Jack, apesar do levar o nome solo, tinha parceria do DJ Ninja e do A.G Naja (Rooneyoyo O Guardiao) - o termo A.G. é a sigla para ajudante geral. Com a ousadia das ruas e o sangue de b.boy, Jack trouxe as faixas "Centro da Cidade" e "Calafrio (Melô do Terror)" que através da crítica social sobre geografia paulistana e o ego do ser humano, carrega uma boa dose de humor dentro da poesia.
Já O Credo, Formado por MC Who?, o Ruberval; e DJ Uzi, o Cassius, abordam temas mais filosóficos como o poder da fé, ou seja, o credo. As duas faixas "O Credo" e "Deus da Visão Cega" partem para um experimentalismos que transmiste a fase mais eletrônica apresentada por Afrika Bambaataa. Como curiosidade, DJ Uzi não estava no Brasil no momento do lançamento do disco Hip Hop Cultura de Rua, e o Ruberval não tinha músicas suficientes para fechar o disco, então seu espírito de coletividade, espirito de hip hop, fez com fosse até a Estação São Bento e chamasse os destaques do movimento para participarem do álbum.
Faixa a Faixa
Corpo Fechado (Thaide & DJ Hum): A letra é uma declaração de força e resistência, na qual o rapper afirma sua identidade e trajetória de vida marcadas pela superação de adversidades na favela e nas ruas. Com uma postura desafiadora, ele aborda temas como violência, lealdade e proteção espiritual, enfatizando sua resiliência e determinação em se defender e lutar por aqueles que ama. A repetição do nome "Thaíde" reforça sua presença impenetrável e autossuficiente, transmitindo uma mensagem de orgulho pelas suas origens e firmeza diante dos obstáculos.
Código 13 (Código 13): A letra de "Código 13" expressa uma mensagem de resistência e autenticidade dentro do movimento hip-hop. A canção critica a superficialidade e a comercialização da cultura, enfatizando que o hip-hop é mais do que apenas um estilo de roupa ou música – é uma experiência vivida e sentida. A letra aborda questões como a luta contra o racismo, a necessidade de se manter firme em suas convicções e a busca por compreensão em um mundo repleto de limitações e imposições. O refrão alerta sobre a massificação e a manipulação, incentivando a consciência crítica e a autonomia.
Centro da Cidade (MC Jack): retrata o cotidiano vibrante e caótico do centro de São Paulo, com suas ruas movimentadas, personagens variados e a realidade dura de quem busca oportunidades. A música pinta um quadro detalhado da vida urbana, destacando desde vendedores ambulantes e pessoas em busca de emprego até trombadinhas e figuras icônicas da cidade, como Hare Krishnas e punks. Jack observa a diversidade e o ritmo frenético da região, reconhecendo o centro como o coração pulsante da metrópole e um lugar que moldou sua própria trajetória.Uma faixa que fala sobre a vida na cidade grande, com suas dificuldades e desafios.
O Credo (O Credo): Uma faixa mais introspectiva, que aborda temas como alienação, manipulação e a busca por autenticidade em um mundo cheio de falsidade e ilusões. A letra critica a imposição de crenças e ideologias que escravizam e controlam as pessoas, questionando o valor dessas doutrinas que são aceitas sem questionamento. Há um tom de revolta contra o conformismo, o progresso superficial e os discursos vazios que prometem uma realidade melhor, mas não entregam resultados significativos. A música enfatiza a necessidade de romper com essas ilusões e buscar uma verdade própria, resistindo às imposições e à mediocridade da sociedade.
Deus da Visão Cega (O Credo): A música reflete uma crítica ácida à hipocrisia e à covardia presentes na sociedade. A música questiona os erros e as falhas humanas, sugerindo que muitos preferem ignorar suas próprias imperfeições enquanto apontam os defeitos dos outros. Com uma linguagem contundente, o narrador rejeita a ideia de ser visto como um "deus" e desafia as normas sociais, expressando o desejo de quebrar o conformismo e a mediocridade. A canção destaca a falta de autenticidade e confronta a covardia cotidiana, propondo uma mudança radical no comportamento e nas escolhas de vida, onde não há espaço para a indiferença ou para ficar em cima do muro.
Homens da Lei (Thaide & DJ Hum): A letra oferece uma crítica contundente à violência policial e à corrupção no sistema de segurança pública em São Paulo. A música expõe como os policiais, que deveriam proteger a população, muitas vezes abusam de seu poder, cometendo atos de violência e impunidade. Thaíde aborda o medo constante de ser alvo da brutalidade policial, especialmente nas periferias, onde o abuso é mais frequente. A canção questiona a justiça e ironiza o comportamento dos "homens da lei", ressaltando a desigualdade e a opressão enfrentadas pela população negra e pobre nas ruas da cidade.
Gritos do Silêncio (Código 13): Com guitarra de André Abujamra, é uma crítica contundente às mazelas sociais e à opressão cotidiana. A letra aborda temas como a corrupção do poder, a decadência urbana e o impacto destrutivo das drogas, retratando a cidade como um lugar implacável, onde a vida é frequentemente esmagada. A música reflete o sentimento de desesperança diante do capitalismo e do consumismo, expondo o vazio das relações humanas e a falsidade que permeia as interações. Com metáforas fortes, como "gritos do silêncio" e "pássaro preso na gaiola", a canção denuncia a falta de liberdade e os sofrimentos invisíveis que consomem a sociedade, ecoando uma voz de resistência e descontentamento.
Calafrio (Melô do Terror) (MC Jack): A música traz uma narrativa arrepiante que mergulha no mundo do sobrenatural e do horror. A letra apresenta uma atmosfera sombria, onde forças malignas e criaturas macabras aterrorizam a humanidade. MC Jack personifica o terror em si, ameaçando aqueles que se julgam valentes e advertindo sobre o poder das trevas. Com referências a lobisomens e vampiros a música evoca imagens de medo e perseguição, criando uma sensação de ameaça constante. O tom misterioso e o jogo com o desconhecido reforçam o clima de suspense e pavor ao longo da canção.
Impacto e Legado
Hip Hop Cultura de Rua foi um álbum fundamental para a consolidação do hip hop no Brasil. As letras engajadas, a produção de qualidade e a participação de diversos artistas talentosos fizeram do disco um clássico do gênero. O álbum abordou temas relevantes como a desigualdade social, a violência e a luta pela sobrevivência, e inspirou diversas gerações de MCs.
30 Anos do Disco Hip Hop Cultura de Rua: Um Mergulho na História do Rap Brasileiro
O livro "30 Anos do Disco Hip Hop Cultura de Rua", de Jeff Ferreira, é uma obra fundamental para quem busca compreender a história do hip hop brasileiro. Lançado em 2018, o livro celebra um marco histórico da cultura hip hop no país: o álbum "Hip Hop Cultura de Rua", lançado em 1988 pela Gravadora Eldorado.
Um Registro Histórico e um Ato de União
O álbum "Hip Hop Cultura de Rua" não foi apenas um disco, mas um manifesto. Ele representou a união de diversas crews de hip hop de São Paulo, que na época viviam em constantes disputas. Ao trazer para um mesmo disco nomes como Thaide & DJ Hum, MC Jack, O Credo e Código 13, o álbum promoveu um encontro inédito e histórico, selando a paz entre as diferentes facções.
Um Mergulho nas Origens
O livro de Jeff Ferreira vai além da simples comemoração dos 30 anos do disco. Ele nos leva a uma jornada pelas origens do hip hop no Brasil, desde seu surgimento nos Estados Unidos até sua chegada em terras brasileiras. O autor traça um panorama detalhado da cena hip hop da época, abordando temas como o breakdance, o graffiti e, claro, o rap.
Entrevistas e Memórias
Uma das grandes qualidades do livro é a presença de entrevistas com os principais envolvidos no projeto, como os artistas, produtores e membros das crews. Essas entrevistas trazem à tona histórias e memórias que ajudam a contextualizar a época e a entender o impacto que o álbum teve na cultura hip hop brasileira.
Preservando a História
O livro "30 Anos do Disco Hip Hop Cultura de Rua" é mais do que uma simples biografia de um álbum. É um documento histórico que preserva a memória de um movimento cultural que transformou a música brasileira. Ao resgatar histórias e personagens que muitas vezes são esquecidos, o livro contribui para a valorização da cultura hip hop e garante que as novas gerações conheçam suas raízes.
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