Em 1997 a música brasileira e mundial perdeu o poeta do mangue. Em um acidente de carro na estrada que liga Olinda e Recife, Chico Science virou uma imagem digital. Desencarnou. Foi foda.
Ficou o legado. Ficou o Manguebit. Em 2009 Fred Zeroquatro disse a Filha de S. Paulo que naquele momento o Manguebit não passava de duas comunidades no Orkut. Verdade que o termo já não tem o mesmo apelo de outrora, mas tem um certo romantismo envolvido. Explicar para os mais jovens sempre tem esse viés romântico, se eles vão captar ou não, é outra história. Quem viveu o mangue carrega a lama na veia. E é isso.
É pensando nesses - que acredito que sejam muitos, além de duas comunidades no Orkut - que a banda Mundo Livre S/A caiu na estrada para celebrar os 30 anos do manifesto Caranguejos com Cérebro. O marco zero do movimento Manguebit.
Campinas, 21 de julho de 2023
Fred Zeroquatro puxou a corda dos caranguejos com cérebro oriundos daquela que foi considerada a quarta pior cidade do mundo: Recife. Ou como alguns chamam, Hellcife.
Com Pedro Diniz, responsável pelo grave, Xef Tony nos pratos, bumbo e caixa, Léo D nos teclados e samples e Tom Rocha na percussão, o Mundo Livre fez um show memorável no palco do Brasuca em celebração aos 30 anos de Manguebit.
Recife, em algum momento de 1992
Zeroquatro, em algum boteco sujo da ensolarada capital pernambucana, escreve o Manifesto Caranguejos com Cérebro. O texto é usado como release para que a imprensa tome conhecimento do Manguebit, à época, uma cooperativa entre as bandas Mundo Livre S/A e Chico Science & Nação Zumbi para a realização de eventos em Recife. Posteriormente o termo passou a designar um movimento musical e até mesmo um gênero de música. Unindo a música mundial como o rock e o rap aos ritmos regionais como maracatu, ciranda, coco e embolada. Como analogia, uma antena fincada na lama, Recife foi erguida em cima de um manguezal, por isso o apelido de Manguetown.
Neste manifesto, dividido em três partes: Mangue, o conceito; Manguetown, a cidade; e Mangue, a cena, Zeroquatro teve:
"Hoje, os mangueboys e manguegirls são indivíduos interessados em Hip Hop, colapso da modernidade, caos, ataques de predadores marítimos (principalmente tubarões), moda, Jackson do Pandeiro, Josué de Castro, rádio, sexo não-virtual, sabotagem, música de rua, conflitos étnicos, midiotia, Malcom Maclaren, Os Simpsons e todos os avanços da química aplicados no terreno da alteração e expansão da consciência."
Voltamos a Campinas, na noite de 21 de julho de 2023
O Mundo Livre S/A comemora os 30 anos do manifesto, escrito regado a cerveja antes do almoço e o contundente discurso de "Fora Collor", a banda monta um repertório que visita músicas de Chico e da Nação, assim como da Mundo Livre, que contam a história desses últimos 30 anos em som toda a estética do movimento Manguebit, que, em consenso, é o movimento artístico-musical cunhado em solo brasileiro mais relevante desde a Tropicália. E eu prefiro o mangue!
Atemporal
É como se algumas músicas de Fred tivessem sido escritas ontem. Como "Computadores Fazer Arte", que Chico gravou no primeiro disco da Nação. Em tempos de inteligência artificial criando imagens, textos, músicas e tudo mais, a canção parece dialogar com o tema. Assim como "Édipo - O Homem que Virou Veículo", podíamos falar da pandemia, das milícias, do Brasil que voltou ao mapa da fome, de um desgoverno canalha. Tudo se encaixa.
Outras foram escritas no momento atual, como "Fake Milho", mas poderia retratar um período mais antigo. É como se o Brasil vivesse num eterno back to back.
E assim se varre todo repertório do Mundo Livre que também cantou Chico Science e Nação Zumbi em uma verdadeira homenagem ao Manguebit.
Fred, aos 58 anos de idade, se mostra com a energia de um menino. Com seu cavaquinho envenenado em acordes endiabrados o rockstar mostra seu cartão de visita. Muitos momentos o punk troca o instrumento do samba pelos riffs da guitarra elétrica. Carisma, sarcasmo e atitude, um showman como poucos.
Salve Zeroquatro, salve! Salve a música
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