No episódio da semana passada do podcast Mano a Mano, os entrevistados de Mano Brown foram o Rincón Sapiência e o Baco Exu do Blues. Em determinado momento da conversa, Brown direciona para Baco uma pergunta, até por ele ser do nordeste, se ele conhecia o Clã Nordestino. A resposta foi negativa, Baco não conhecia, perguntou se eles eram de Fortaleza e depois quando Brown fala que era um grupo do início dos anos 90, Baco ri e ironiza, afirmando que nessa época ele estava nascendo. O fato de eu ter nascido nos anos 80 não me impediu de eu saber quem foi James Brown, quem foi Marvin Gaye, mas tudo bem, esse não é o caso em questão.
Existe uma distância entre gerações que faz com que isso seja muito mais normal do que pensamos. Ninguém é obrigado a saber quem é o Clã Nordestino, quem é Pepeu, quem é MC Jack, Código 13, Damas do Rap. Mas essa não obrigatoriedade é o que faz com que pessoas como as que citei, de extrema importância para a nossa Cultura, sejam esquecidas no decorrer dos anos, a cada geração que se envolve com o Hip Hop. O que Brown esperava, por ser um cara que sempre respeitou e reverenciou quem veio antes dele, é que Baco tivesse ao menos conhecimento de um importante grupo da região a qual ele faz parte. Mas o ato de reverenciar, respeitar, cultuar e até idolatrar quem veio antes, não é uma prática comum das novas gerações. Muitos deles sabem que hoje fazem parte de um período onde se ganha dinheiro com o Rap, diferentemente do que gerações anteriores viveram. E por serem parte da geração que conquistou e que erroneamente prega que a ‘favela venceu’, é que eles se julgam superiores e consideram quem veio antes fracassados. Não se trata de ser unânime esse raciocínio, apesar de ser um pensamento da maioria. Não quero aqui dizer que a geração atual esteja errada, quem dera que a geração de MT Bronks, DMN, Sistema Negro, Câmbio Negro e Filosofia de Rua toda tivesse a oportunidade de ter vivido da música, pelo tanto que representam para o Hip Hop brasileiro. Todos que são verdadeiros naquilo que se propõem deveriam ser remunerados pelos seus feitos, independentemente da geração a que pertençam.
O que realmente me preocupa é que artistas do quilate de um Preto Ghoez, EliEfi, GOG, Aliado G, só para citar nomes importantes na parte política do Hip Hop, sejam esquecidos a cada mudança de geração. Não podemos esquecer que o Hip Hop, além de ser um movimento artístico e cultural, é uma ferramenta de construção pedagógica e que norteou a cabeça da juventude periférica mundo afora. Quando a escola nunca sequer nos falou sobre Zumbi, Dandara, Karl Marx, Nelson Mandela, Esperitina Martins, era o Rap que nos informava e nos apresentava páginas de histórias que nunca foram mencionadas na sala de aula. A enorme maioria de MC’s sempre acreditou que saber rimar e ter flow já basta, que esses sejam os requisitos básicos para adentrar no Rap. É que o Rap não exclui, pelo contrário, ele é inclusivo, ele oportuniza, ele abre as portas e não permite que faça parte dele só quem estuda a história. Quem quiser ser um MC será!
Quando se busca uma oportunidade de emprego, a primeira coisa que precisamos fazer, é colocar no currículo as vivências e experiências anteriores que já tivemos, mas o Rap é tão bom que não cobra nem isso, simplesmente ele acolhe e deixa fazer parte dele quem queira. A premissa de saber quem foi o cara que iniciou a escrever a história do Hip Hop no seu bairro, na sua cidade, no seu estado, deveria ser uma obrigação sua. Como já mencionei acima, o Hip Hop não lhe cobra isso, mas deveria ser uma lição de casa de todos que querem fazer parte dele. Muitas vezes o público sabe muito mais do que o próprio artista.
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Preto Ghoéz |
É comum ver em programas esportivos, comentaristas que foram jogadores de futebol afirmarem que sabem muito mais do que outros comentaristas que não jogaram, mas que se veem no direito de também comentar o espetáculo porque se prepararam para tal, seja na universidade ou em cursos que lhes dão esse suporte. E aí surge aquela pergunta de sempre: Jogou onde? No Hip Hop temos colecionadores e fãs que sabem muito mais da história do que artistas, pois esses colecionadores se aprofundam na pesquisa musical, se interessam em saber onde estão inseridos e isso os torna profundos conhecedores da história da Cultura Hip Hop. Acredito que na minha caminhada de quase 30 anos no Hip Hop, a maioria dos caras que muitas vezes me demonstraram serem exímios conhecedores da Cultura não eram artistas do Hip Hop, e sim aficionados que simplesmente devoraram tudo que diz respeito ao conhecimento.
Mas quem foi Preto Ghoez e o Clã Nordestino, afinal de contas? Lembro quando o Yo! era apresentado na MTV e era uma das nossas poucas ferramentas de divulgação do Hip Hop. Era uma dificuldade conseguir sintonizar, mas estávamos sempre atentos e torcendo para que nas madrugadas que passava o programa não estivesse chovendo, para que conseguíssemos assistir sem interferência na imagem. E num desses programas, lá estava o Clã Nordestino nos estúdios da MTV, não recordo se entrevistados pelo Thaíde ou pelo KL Jay. Passado algum tempo, Porto Alegre sediou o 2° Fórum Social Mundial, onde pessoas do mundo inteiro se reuniam para discutir, como o próprio slogan do Fórum pregava: um outro mundo possível.
Lembro que saímos de Pelotas para participar do FSM e quando chegamos em Porto Alegre, eu e o Guido CNR fomos almoçar em um desses restaurantes populares que havia no centro da capital gaúcha. Quando estávamos na fila para nos servirmos, de longe avistei o Preto Ghoez e sua rapaziada do Clã e falei para o Guido que aquele era o grupo Clã Nordestino. Chegamos até eles e nos apresentamos como membros do Hip Hop gaúcho. Eles estavam recém chegando do Maranhão e ainda não haviam encontrado ninguém do estado que sediava o FSM. Almoçamos juntos, eu, o Guido, o Preto Ghoez, o Lamartine, o Nando e outras pessoas que estavam junto deles e durante quase uma semana nos encontramos todos os dias. Ghoez era um cara super articulado, encabeçou muitas discussões durante aqueles dias, foi uma figura super ativa nas reuniões que envolviam figuras importantes do Hip Hop dentro do FSM. Quem também estava por lá era o Preto Zezé, que é de Fortaleza, outra figura importante do Hip Hop do nordeste, que hoje é presidente da CUFA. Ghoez e Zezé não se davam, nunca soube exatamente por qual motivo, mas eram articuladores natos. Lembro que entrevistei os dois para o Programa Comunidade Hip Hop, que eu apresentava na Rádio Com, de forma separada, óbvio. E também recordo que estávamos juntos, eu e o Preto Ghoez, assistindo ao show do grupo Revolução RS no palco principal no Anfiteatro Pôr do Sol e ele me falava que a temática das músicas do Revolução não eram condizentes com a proposta do FSM. Mas foi através dos guris do Revolução que fomos parar na Bom Jesus, a quebrada deles, para irmos a uma festa que ficou marcada naquele ano. No mesmo palco estiveram presentes Revolução RS, Clã Nordestino, Negrociação de Florianópolis e as meninas argentinas do grupo Actitud Maria Marta. Foi uma noite memorável.
Dois anos depois, em 10 de setembro de 2004, na cidade de Itajaí em Santa Catarina, Preto Ghoez perdia a vida, aos 32 anos de idade, em um acidente de carro. Mas antes de partir, contribuiu muito para que o nordeste tivesse um Hip Hop politizado e resistente. Ghoez fez parte do Quilombo Urbano, uma organização que trouxe politização e militância atuante ao Hip Hop de São Luís. Também articulou o MOHHB (Movimento Organizado do Hip Hop do Brasil), escreveu o livro Sociedade do Código de Barras, participou da reunião onde o Hip Hop brasileiro foi recebido pelo presidente Lula no Palácio do Planalto, no dia 25 de março de 2004. Preto Ghoez virou o nome do prêmio criado pelo Ministério da Cultura que em sua primeira edição distribuiu quase 2 milhões de reais para artistas e organizações do Hip Hop. Ainda venceu o Prêmio Hutuz com seu disco A Peste Negra, como artista revelação.
Todas essas contribuições a que Preto Ghoez se dispôs a fazer em vida e que após a sua morte seguem reverberando, como por exemplo, a Construção Nacional da Cultura Hip Hop, que se mobiliza agora para celebrar os 50 anos do Hip Hop no mundo, e que sua comitiva foi recebida em Brasília, são sementes plantadas por um cara que perdeu a vida na estrada, trabalhando, viajando e articulando o Hip Hop. Preto Ghoez não faleceu na estrada que construiu, mas foi o alicerce para que hoje artistas do nordeste sejam reconhecidos além de seus limites territoriais, incluindo o próprio Baco Exu do Blues.
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Preto Ghoéz |
Ninguém é obrigado a conhecer os arquitetos do Hip Hop, porém nesse texto fiz questão de ressaltar e valorizar quem construiu a estrada. Hoje essa estrada é pavimentada, bem iluminada e fácil de dirigir sobre ela, mas já foi esburacada, escura e de difícil tráfego. Só o que quero aqui é salientar que não podemos esquecer dos operários que um dia a construíram.
Leia também:Hip Hop Socialista | Clã Nordestino - A Peste Negra Troca os Pentes
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