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Kendrick Lamar como Will Smith no vídeo The Heart Part 5. |
“No seu maior momento, tome cuidado, é quando o diabo vem te atentar.”
Foi o que Denzel Washington disse a Will Smith no que deveria ser o maior momento de sua vida, quando depois de 4 indicações ao prêmio da academia e décadas de uma carreira exemplar, o ator finalmente obteve sua primeira estatueta de melhor ator por sua atuação como o pai das irmãs Williams, no maravilhoso, King Richard.
Will sempre foi uma figura familiar para maioria dos adolescentes criados nos anos 90 e 2000. Ele foi nosso primo mais velho descolado, que se vestia bem, sabia de música e cinema, era bonito e estiloso, inteligente e nos despertava consciência social e racial, mesmo quando nós nem sabíamos o que era isso. A sua série de estreia — Um Maluco No Pedaço — fazia parte da nossa rotina e era muito raro alguém que não conhecesse e gostasse do jovem Will, que com o passar dos anos construiu uma carreira no cinema, na música, como produtor, realizador e também escritor, se tornando um exemplo, junto com sua família. E, acredito, que muita gente esperava por esse momento de reconhecimento, não só por sua atuação como Richard Williams, mas também por toda essa sua carreira acompanhada “de perto” por todos os seus fãs.

Porém, pouco se falou e se fala até hoje do seu maior momento, pois como previsto por Denzel, o diabo atentou e no dia seguinte só se falava nisso. O momento protagonizado por Smith e pelo comediante Chris Rock, que fez um comentário de muito mal gosto sobre a situação de Jada Pinkett Smith — esposa de Will — sobre uma doença que acarreta na perda de cabelo. A doença sofrida por Jada, já havia sido comentada em seu programa de TV e em suas redes sociais e pela proximidade de Rock com a família Smith, supunha-se que também era de conhecimento do ator. O fato é que, após o comentário, Will subiu no palco e deu um tapa na cara de Chris. Após isso, uma série de coisas aconteceram, como processos, perda do prêmio, perda da cadeira que Will ocupava na Academia, um afastamento de 10 anos das atividades relacionadas a mesma, uma internação e fora o que não sabemos ainda.
“Neste momento da minha vida, estou sobrecarregado pelo que Deus tem me pedido para fazer e ser nesse mundo. Eu sou convocado na minha vida a amar e a proteger pessoas e a ser um rio para as minhas pessoas. Eu sei que fazer o que a gente faz, você tem que ser capaz de lidar com o abuso, você tem pessoas falando loucuras sobre você e nesse negócio você tem que ser capaz de aguentar pessoas te desrespeitando e você tem que sorrir e fingir estar tudo bem. “ discurso de Will Smith no Oscar de 2022.
A academia que já vivenciou diversas polêmicas, nunca foi capaz de punir de uma maneira tão severa como fez com Smith, Kevin Spacey ou Cassey Afleck, por exemplo, sendo o último, no mesmo ano que foi acusado de assédio sexual, o ganhador da estatueta de melhor ator. Ou Woody Allen que foi acusado por sua própria filha de abuso sexual, bem como Roman Polanski, que mesmo proibido de entrar nos EUA por ter abusado sexualmente de uma menina de 13 anos, ganhou um Oscar e teve seu filme aplaudido de pé….
Após messes do evento do Oscar e de tudo o que sabemos e o que não sabemos que aconteceu, Will aparece no videoclipe de The Heart Part 5 do rapper Kendrick Lamar. Depois parar o mundo do hip hop com o anúncio de seu quinto álbum de estúdio, Mr. Morale & the Big Steppers, Kendrick lança single The Heart Part 5, com videoclipe onde se transforma em homens famosos na cultura afro-americana, sendo um desses homens o ator, produtor, rapper, Will Smith.

“Passo a maior parte dos meus dias com pensamentos fugazes. Escrevendo. Escutando. E coletando velhos cruzadores de praia. Os passeios matinais me mantêm em uma colina de silêncio. Passo meses sem telefone. Amor, perda e tristeza perturbaram minha zona de conforto, mas os lampejos de Deus falam por meio de minha música e família. Enquanto o mundo ao meu redor evolui, reflito sobre o que mais importa. A vida em que minhas palavras vão pousar em seguida.” (Kendrick Lamar em 2021 em um comunicado emocionante anunciando a saída da gravadora Top Dawg Entertainment após 17 anos e desde então os fãs estavam ansiosos aguardando esse novo álbum.)
De lá pra cá muita coisa aconteceu e óbvio que ele não poderia deixar passar e incluir Will na quinta parte de seu coração, acredito que não tenho sido coincidência.
Eu venho de uma geração de dor… Faça a curva errada, seja por querer ou o alinhamento da roda. Insensibilizado, eu vandalizei a dor, escondi e camuflei. Me acostumei a ouvir a chuva de arsenal. Analise, arrisque sua vida e aguente a carga. Os manos comeram a mãe do seu filho enquanto você estava preso, é a cultura. Kendrick Lamar em The Heart Part 5
Kendrick é realista demais, pessimista demais, doloroso demais, poético demais, profético demais; como em todos o seus trabalho. A crítica sobre a “cultura” que ele faz nessa música, enquanto se transforma em grandes nomes da cultura negra, conversa diretamente com o discurso de Will no Oscar, o episódio com Chris Rock e toda repercussão disso depois.
“Eu quero representar por nós. Uma nova revolução começando e eu na Argentina, limpando minhas lágrimas, cheio de confusão. Água entre nós, outro parceiro foi executado, a história se repete outra vez. Faça as pazes, depois ache outro preto da mesma cor que aceite. Mas essa é a cultura. Abra outra garrafa, é difícil lidar com a dor sóbrio, mas amanhã, esquecemos os destroços, recomeçamos e esse é o problema da nossa fundação, fomos treinados a aceitar o que vier. Desumanizado, insensível, examino o modo que vivemos por você e por mim. Inimigos apertam minha mão, prometo que vou te encontrar. Na terra onde nenhum igual é seu igual, não diga que não te avisei. Na terra onde pessoas machucadas, machucam mais pessoas. Foda-se chamar isso de cultura. “ Trecho de The Heart Part 5.

É o que Kendrick canta no trecho onde se transforma em Will Smith e se os versos foram diretamente inspirados nele não dá pra saber. O que se sabe é que o que é cantado ali é a situação universal que vivemos.
Will foi julgado e só.
Não que o que ele tenha feito tenha sido certo, mas enquanto a cultura tenta justificar ações negativas de diversos famosos, como Justin Bieber, por exemplo, que mesmo envolvido em diversas polêmicas, obteve sua redenção e nada de ruim aconteceu em sua carreira, Will não conseguiu ao menos se retratar por sua atitude, pois foi tão julgado que teve que se internar para se tratar pois não aguentou a pressão…

Ver dois grandes artistas negros sendo marginalizados, estigmatizados, desumanizados, por atitudes que sim, foram extremamente erradas, mas que tiveram suas GRANDES carreiras e digo grandes mesmo, completamente reduzidas a um ato é um grande retrocesso pra cultura. Chris Rock, que já foi eleito o melhor comediante de todos os tempos, apresentou diversas premiações, atuou em grandes filmes, criou uma das maiores séries de todos os tempos, produziu e atuou em diversos filmes, ganhou um oscar por ter dirigido o documentário Good Hair, onde estuda a cultura de cabelos afro e a indústria capilar… esse mesmo Chris Rock, que fez uma “piada” extremamente infeliz sobre sua irmã, será sempre lembrado por ter tido uma briga com outro grande artista preto, que também teve uma carreira e vida reduzida a um erro… porque pretos não podem errar. E essa é a nossa cultura.
“O propósito tá nas lições que estamos aprendendo agora. Sacrifique ganho pessoal acima de tudo, só pra ver a próxima geração melhor do que a nossa. Eu não fui perfeito, minha pele realmente sofreu tentação, impaciência, tudo o que o corpo nutre. Eu senti o bem, eu senti o mal, eu senti a preocupação, mas no geral minha produtividade continuava urgente. Encare seus medos, sempre soube que chegaria aqui, onde a energia é ampliada, e preservei a consciência é clara como um cristal. Refletindo sobre a minha vida e o que fiz, paguei dividas, criei regras e mudei por amor. As mesmas opiniões fizeram escolas mudarem o conteúdo, mas não mudou eu encarando o cano da arma. Eu deveria ficar ressentido por não ter visto o meu potencial máximo? Deveria me arrepender pelo bem que eu tava envolvido? Tudo é tudo e não é consciência.” The Heart Part 5.

Uma das grandes coisas que eu admiro no Kendrick é seu efeito yin yang, pois ele consegue ser realista, nos mostrar tudo de cruel que há e no final nos dizer que vamos ficar bem. O que ele faz em toda a sua obra e se preocupar menos em mudar o mundo e mudar nossos pequenos mundos. O que ele diz em part 5 e o que podemos tirar de lição da situação de Smith e Rock: a cultura não vai mudar. E por mais que ela, em teoria, esteja ao nosso lado, ela está contra nós e pior do que isso, é capaz de nos colocar uns contra os outros. E pra mudarmos os nossos pequenos mundos e nossas pequenas culturas, precisamos, como diz Kendrick: sermos todos nós.

“Eu acordei naquela manhã com mais coragem para transmitir. Enquanto eu sangro pelo som, sinta minha presença. Pro meu irmão e pros meus filhos: eu tô no céu! Pra minha mãe e pra minha irmã: eu tô no céu! Pro meu pai e pra minha esposa: é sério, isso é o céu. Pros meus amigos, lembre-se de contar as bênçãos. Pros meus fãs, lembrem de fazer investimentos. E pro assassino que adiantou a minha morte: eu te perdoo, mas saiba que a sua alma tá em questão […] lembre-se de viver os sonhos que produzimos, mantenha a genialidade no cérebro em ação e pro meu bairro: deixe o bem prevalecer, lembre-se de manter as crianças e os lideres fora da cadeia. Procure salvação quando os problemas forem sérios. Porque não dá pra salvar o mundo enquanto você não ajudar a si mesmo”. The Heart Part 5.
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