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Quem Tem Bit Tem Tudo: O Carnaval na Obra do Mundo Livre S/A

Jeff Ferreira
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O Mundo Livre S/A causou estrondoso barulho ao lançar o Samba Esquema Noise em 1994. Ao lado de Chico e a Nação Zumbi, Fred Zeroquatro e sua banda expondem o termo Manguebeat. Em 1996 a Mundo Livre passa pelo teste do segundo disco ao nos entregar o brilhante Guentando a Ôia (o qual você pode ler a resenha aqui). E em 1998 é a vez do Carnaval na Obra o terceiro disco dos pernambucanos.


O disco marca uma mudança na banda, esse é o primeiro registro sem Otto, que estava no posto de percurssionista e deixou o projeto em 1996 se lançando em carreira solo. O fato se deu com a rescisão do contrato entre a Excelente Discos com a Polygram, empresa que distribuía os discos da MLSA. A Excelente Discos assina com a Abril Music para fazer a distribuição. Em 2018, relembrando o disco, Zeroquatro deu entrevista para o Jornal do Commercio (04 de maio, apurado por Fagner Morais para o portal Music on the Run) e comentou que:


"Carnaval na Obra foi a transição do analógico para o digital. Foi um processo muito marcante, porque significaria uma redução considerável de custos e a liberdade que proporcionava em termos de canais. Era um salto tecnológico absurdo. Lembro como hoje de uma conversa decisiva que tive com Miranda sobre o planejamento do disco".


Com a seguinte formação: Fred Zero Quatro no vocal, guitarra e cavaquinho; Pedro Diniz no baixo; Xef Tony na bateria; Léo D. no teclado e Pedro Santana na percussão, o Mundo Livre S/A coloca na rua um disco com 14 faixas e pouco mais de 70 minutos de duração e tem produção de quatro grandes nomes da nossa música Bid, Edu K, Apollo 9 e Carlos Eduardo Miranda.


O disco abre de forma suave com "Alice Williams", uma balada groovada com destaque no cavaquinho de Fred em letra que exalta os atributos de Alice Willians, personagem da serie Detroit - Become Human. Alice é uma andróide infantil YK500, comprada para substituir a filha biológica de Todd Willians que partiu com a mãe. Alice nasceu em 2033 e faleceu em 2038:


"Injeção eletrônica

Suspensão ativa

Com ela eu não via ninguém na minha frente

Alice, vai

Alice

Alice

Alice


Mas ela me deixou em meia temporada

E eu nunca mais tive uma pole sequer

Agora o que que eu faço sem a minha Alice?"


Na sequência a faixa que fez parte da trilha sonora do filme Amarelo Manga (Claudio Assis, 2002). O samba "Édipo, o Homem que Virou Veículo", fala de forma descontraída de uma mazela que acomete boa parte dos brasileiros, sobretudo os trabalhadores precarizados que sobrevivem revirando lixo:


"Isso é o que dá viver catando lixo

Que falta de educação, mané

Que tal criar vergonha, quem já viu ser

Transportadora de bicho de pé"


A terceira faixa, "Bolo de Ameixa", apresenta uma interessante construção musical com peso nos riffs de guitarra e flerte com a música eletrônca e o rap e até mesmo pitadas de axé. A música, composta em parceria com o escritor e jornalista Xico Sá, fala de um cidadão que, após a rotina pesada de trabalho durante a semana, se vê no momento de intimidade com a esposa em um domingo, mas não conseguem o vico-vuco devido as várias interrupções:


"O proletariado achou a vingança

De short, mini-blusa, barriguinha de fora

Ela pisca, pisca, a ordem de comando

"La revolución não demora!"

A cunhada chega trazendo os sobrinhos

E eu aqui piscando "fora, fora!"

A classe operaria vai ao paraíso

Por mim tudo bem, mas por que logo agora?"


Em "A Expressão Exata" o experimentalismo dita o ritmo, o cavaco é tocado como uma guitarra, a bateria tem compasso de boombap e o teclado emula um grave sombrio que contrasta com a aurea alegre da canção. Creio que toda a síntese do Manguebit está nessa música que fala sobre a saúde do homem e as reflexões sobre a amsculinidade:


"Como eu queria ter a

Expressão exata pra confessar

O que nunca disse a ninguém

Do fundo da minha gônada

Eu te juro meu bem:

Eu prefiro você a qualquer vira-lata

"O minha pobre próstata inerme...""


Na faixa cinco, a que carrega o titúlo do álbum, "Carnaval na Obra", emprega a experiência do Mundo Livre S/A por terras mexicanas e mistura a a música eletrônica com os ritmos afro-caribenhos, produção de Edu K, em uma faixa praticamente instrumental com intervenção de Zeroquatro anunciando: 


"Vai chover!

Vai parar!

Vai chover!"


"Carnaval na Obra" foi uma especíe de interlúdio para as próximas faixas do disco. Principalmente para "Quem Tem Bit Tem Tudo", faixa que lembra bastante o primeiro disco da banda. A música tem participação de Anônimo, codinome que Ruben Albarránvocalista da banda méxicana Cafe Tacvba, usou nos créditos do álbum Avalancha De Éxitos e em promos e colaborações do período de 1996 a 1998, como este com o MLSA:


"Terremoto

É o terrorismo da natureza

É programático

É estratégico

A natureza é terrorista

É a estratégia de deus

Os inocentes pagam

Por nada representarem"


Já "Meu Quinto Elemento" segue o experimentalismo com uma mistura de jazz underground e percursão caribenha em um texto rápido e direto com a irreverência de Fred para um momento a dois:


"Abre-te sésamo, ou um lobo vai te torar

Vou mandar se fuder simplesmente

Se parar de ser

Exigente, carente, ardente

Fecha-te sésamo"


O texo lírico também se faz presente em "Quarta Parede" tem um arranjo bem leve para acompanhar uma letra bastante poética. Quebrar a quarta parede, no cinema e quadrinhos é quando a personagem conversa com o público, como se soubesse que está em uma história. Zeroquatro, fã desses dois típos de mídia brinca com esse definição:


"Olha, eu sou você

Preso nesse aparelho

Que há pouco você ligou

Você é meu carrasco

Além desse botão

Ao qual você se entregou"


"Ultrapassado" apresenta uma melancolia como em samba triste misturado ao groove da cozinha do Mundo Livre, com o baixo de Pedro Diniz e a bateria de Xef Tony. Fred Zeroquatro desabafa em texto que dialóga com "A Bola do Jogo", faixa de 1994, do primeiro disco da banda, o Samba Esquema Noise, principalmente com a célebre frase: "A alma de um trabalhador é como um carro velho: só dá trabalho!", em uma analogia e entre o automóvel e o cansaço da vida:


"Sem cor, sem fascínio

Vasta avenida de extermínio

Deve ser meu triplo aquecedor

Mais um buraco e eu me encosto

E ligo pro rebocador"


No funk falado ou rap, percursão afro e com a participação de Jorge Du Peixe, a múica "O Africano e o Ariano", em cim dos arramjos de Apollo 9, narra a dor dos negros nos últimos 400 anos e sobre como a música negra derivou estilos e foi usurpada do seio africano em um processo racista de embranquecimento:


"Há quatro séculos a alma humana tem sido um motor

Da inquietação, da resistência, da transgressão

O negro sempre quis sair do gueto

Fugir da opressão fazendo história

Ganhando o mundo com estilo

O africano foi levado para sofrer no norte e gerou

Entre outras coisas, o jazz, o blues, gospel, soul

R&B, funk, rock'n'roll, rap, Hip Hop

No centro, o suor africano fomentou o mambo, o ska

O calipso, a rumba, o reggae, dub, ragga

O merengue e a lambada, dancehall e muito mais"


"Negócio do Brasil" tem um texto direto, de protesto e denúncia  sobre a corrupção à brasileira e certeza de impunidade da classe política do país. No melhor estilo Mundo Livre S/A a letra impactante é acompanhada de um instrumental com arranjos festivos nos mescla de carvala e reflexão, ou como Chico Science dizia: "diversão levada a sério". Essa música se aproxima bastante do que o grupo fez no álbum Walking Dead Folia de 2022:


"Sua excelência autoriza aquela venda

E terá parte na sociedade

Sua campanha estará garantida e nos registros

Como de praxe nada vai constar..."


Chegando ao final do disco a faixa "Maroca" tem clima de brisa de beira-mar, com uma mescla de drum n' bass e chill out em texto póetico sobre a compulsão em adquerir informação: 


"Ainda que eu tenha que roubar

Todas as flores do campo

Ainda que eu tenha que torrar

Minha paciência

Minha compreensão

Minha inteligência

Até meu ultimo tostão com ela

Ela sempre será a dona do meu...

Maroca, Maroca"


"Novos Eldorados" é a penúltima canção, swingada e com gaves acentuados a múica aborda as privatizações da era FHC, principalmente no segundo governo de Fernando Henrique Cardoso. Como num rap de denúncia, Zerquatro dispara:


"Atenção, grandes investidores

Corram enquanto é tempo

Juntem-se a Indonésia na

Venturosa pilhagem do Timor

As petrolíferas ocidentais

Já despertaram para os atrativos da região

E o melhor é que a "impressa livre", como sempre

Finge ignorar, como convém

Aproveitem, aproveitem

A liquidação"


Com texto autobiográfico, "Compromisso de Morte" encerra o álbum Carnaval na obra. A música começã com atmosfera relax e logo vira para uma bala rock, sempre ambientada em transe psicodélico onde Fred resgata suas origens na música:


"Na margem do riacho

Pro bando de Lampião

O almoço hoje é bala

No outro hemisfério

Nos arredores da usina

O almoço é radiação

O almoço hoje é bomba

Pra culpados e inocentes

O almoço é terremoto

Pra cristãos e ateus

As filas afundarão

(Nem os bancos estarão a salvo desta vez)

Minha mãe não pariu nenhum punk

No entanto

Aqui estou eu!!!"


O disco Carnaval na Obra veio para reforçar aquilo que já sabiamos, que a Mundo Livre S/A é uma das melhores bandas do país, principalmente naquela segunda metade dos anos 1990 e sem ter o mesmo apreço que outros grupos daquele mesmo momento. Com um texto atemporal, músicos de alto calibre e versátlidade ímpar, porém sempre dentro de um mesmo tempero e sem desfocar das raízes da banda.


Vale lembrar que Chico Science - o grande mentor e nome do Manguebit - nos deixou em um acidente de carro no dia 02 de fevereiro de 1997. A morte do músico causou grande comoção na cena, não só da música pernambucana, mas de toda música brasileira. Carnaval na Obra foi uma das primeiras repostas do mangue para a sequência sem Chico e conseguiu imprimir toda a originalidade proposta por Science. Ainda em 1998, a Nação Zumbi retorna e lança o disco CSNZ, disco duplo dividido entre os álbuns Dia e Noite, com homenagens a Chico, músicas instrumentais e Jorge Du Peixe a frente da banda, nosvicais, além de versãoes ao vivo na voz de Francisco França. 


A APCA (Associação Paulista dos Críticos de Arte) elegeu o Mundo Livre S/A como melhor banda daquele ano.


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