A espera foi longa. Demorou 22
anos. Mas porque esperamos tanto por um disco do Planet se as músicas contidas
nos três primeiros álbuns são do caralho? Porque música boa nunca é demais...
Além disso, estamos em tempos sóbrios, é preciso atualizar o discurso sem
perder a essência e foi isso que os Hemps fizeram, primeiro um F1 para o F5, ou
vice e versa.
Jardineiros é o quarto ato
dessa missão esfumaçada que vai além de defender a planta, mas também lutar
pelas liberdades individuais e coletivas dos oprimidos. Planet Hemp cultiva uma
resistência, planta luta contra o fascismo e colhe um dos discos mais
importantes na nossa música.
Existem algumas frases
manjadas para contextualizar, sobretudo, um disco de uma banda de longa
caminhada, por exemplo: "é o Planet Hemp de sempre em nova roupagem",
e é verdade. Neste caso me curvo ao clichê para falar de uma banda que taca
fogo na cena com um disco diferente de tudo, mas igual fuça do Planet de
sempre. Eu explico: em 1995 o álbum "Usuário" foi uma paulada, a música
brasileira se renovava, principalmente no rap, rock e reggae, e esse cartão de
visitas foi um cartão bomba. Em Jardineiros vejo um pouco disso (ou muito), uma
obra que causa impacto social, cultural, musical, político e canábico (se é que
isso existe).
Em 1997, Os Cães Ladram, Mas a
Caravana Não Para, o Planet Hemp fazia a prova do segundo disco e apesar de
Bernardo BNegão em boa parte das faixas, o MC tinha saído da caravana para se
aventurar com a banda dos amigos da rua: The Funk Fuckers, em seu lugar um
reserva de luxo: Gustavo de Niterói, a.k.a. Black Alien. O disco ia do samba ao
punk rock passando pelo rap e o samba rock de Luis Caldas com "Nega do
Cabelo Duro". O trabalho de 2022 também aposta nesse caldeirão sonoro, tem
ragga, tem funk, tem rap, tem punk, tem trap, tem até "trunk"!
Em 2000 a ex-quadrilha da
fumaça retornou com A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, disco que marca o retorno
de BNegão e mantém Black Alien, aliás, Gustavo esteve presentes no primeiro
disco, rimou no segundo, chegou ao terceiro e no quarto álbum não seria
diferente. A Invasão foi lançado depois do episódio que levou a banda para a
cadeia e tem um texto que forte sobre censura, liberdade de expressão e
necessidade de luta. Assim como Jardineiros.
Assim, o novo disco surge como
um revival dos primeiros trabalhos, mas a banda não estaciona no tempo e aposta
em misturas que não eram possíveis 20 anos atrás, como flertar com o Trap.
Inclusive, Trueno, o feat em "Meu Barrio" e grande nome do trap
argentino, nem era nascido há 20 anos, quando a ex-quadrilha da fumaça alçou o
terceiro voo.
Não sabíamos, mas quando o
Planet Hemp soltou o clipe "Distopia", com participação do Criolo,
nos era dado duas faixas e um spoiler da terceira. A voz que faz a intro do
clipe foi separada para ser a intro do disco. "Marcelo Yuka" foi
batizada com o nome do autor da frase: "Quando o instrumento do medo não
funciona, a gente adquire um poder inimaginável". A frase foi dita pelo
saudoso Yuka em uma entrevista de 2016 para a Mídia Ninja, BNegão compartilhou
o trecho em suas redes sociais e Marcelo D2 foi resgatar para virar faixa do
novo disco. Uma forma de ter o amigo em Jardineiros.
A faixa dois é "Distopia", uma escolha certeira para mostrar ao público como que viria a banda 20 anos depois. Uma música moderna, gostosa e Planet Hemp, riffs poderosos e uma transição foda para o rap, quase que todo protagonizado por Bernardo. Criolo, o feat, se destaca no refrão icônico e que nos enche de esperança: "Sei da força da canção, eu sei. Lutar com coração, eu sei. Parece uma ilusão, mas sei. Que não ando sozinho, não". A música ainda trás um incidental de "Pela Paz", do segundo disco do Célra, do saudoso Redson, de 1986, o Pela Paz Em Todo Mundo.
A faixa três é "Taca
Fogo" e sua introdução estava no clipe de "Distopia". Trata-se
da voz de Iara Xavier de 1969 durante as transmissões da Ação Libertadora
Nacional (ALN), se comunicando com a resistência de todo país. O mesmo sample
foi usado na música "Marighella", do Racionais MC's. "Taca
Fogo" é um um "trunk", a mistura do trap com o punk através de
uma virada genial do instrumental saindo da bagaceira do punk e caindo na
sujeira do trap e depois fazendo o caminho inverso. A letra é fogo no parquinho
uma crítica aos minions e seus políticos de estimação. Como curiosidade, Luiza
Machado, esposa de D2, reforça o corro de “Taca Fogo”.
Na sequência temos
"Puxa-Fumo" marcada pela frase: "esse aí puxa um fumo, mas quem
nunca puxou?", a música é um funk que lembra bastante BNegão e Os
Seletores de Frequência e crítica a hipocrisia em relação à planta: "o
presidente já fumou, o filho dele já fumou...".
Seguindo temos "O Ritmo e
a Raiva", frase eternizada em "Zerovinteum", O Ritmo e a Raiva
também seria o nome do DVD que marcava o retorno do Planet, mas nunca saiu. A
música traz participação de Black Alien, que na real é um membro honorário do
Planet Hemp, o beat é um trap e a letra é biografica e conta a história da
banda, sobretudo homenageando o seu fundador Luis Antônio Skunk: "De volta
ao ano de 92, Skunk me apresenta Marcelo D2, aí fomos presos e cinco anos
depois perante o juiz foi que a gente depôs".
"Jardineiro" (no
singular) é a faixa título é um delicioso e suingado ragga para seguir a ideia
de apontar a hipocrisia quanto à maconha e resgatam um frase do disco usuário:
"jardineiro não é traficante, ouça o que eu tô te dizendo cumpadi, não
compre, plante!". A faixa "Amnesia" tem essa grafia em
referência a especialidade de Canabis Amnesia Haze, um híbrido da Sativa com
linhagem que produz grande porcentagem de THC, indo de 20% a 25%. A amnesia tem
suas origens na Tailândia, Camboja, Jamaica e Afeganistão. O beat de
"Amnesia" é uma produção do Nave e mescla o ragga com o dub e a
psicodelia para marcar no refrão: "olho vermelho, corpo chapadão, e a
cabeça dig dig down, dig dig down".
A faixa 8 apresenta o encontro
do Planet Hemp com argentino Trueno, uma das sensações da nova geração do rap
portenho, com latinidade e suingue a música é pra cima, inclusive com BNegão
rimando em espanhol e citando Che Guevara: "Del sur del mundo para todo
universo, sin perder la ternura jamás, así nos dice Ernesto". Uma das
frases marcantes da música e que representa a alma do disco é de D2: "eu
vim mostrar que se luta com música também!". E Trueno sintetiza a união da música: "Celeste y
blanca con la verde y amarela, es la funciónde la nueva y la vieja
escuela".
“Fim do Fim” é aquele hardcore
melódico e gostoso de se ouvir, resistência sonora, música de embate e instrumental
potente. A letra é composição de Rodrigo Lima e os riffs do Nobru cassam
perfeitamente com a proposta: “Eu te incomodo por estar vivo, não surpreende a
sua indignação, sangue-sugas, assassinos, sacrificando várias gerações”.
A canção de número 10 poderia
ser o hino da resistência em 2022. “Eles Sentem Também” é música de ataca,
porém com a sonoridade experimental dos Lados B’s dos discos, algo que varia
entre funk-rock e o rap-samba com pitadas do punk-reggae e música de terreiro.
D2 leva essa, e fazendo jus ao título da faixa ele reforça: “o medo que você
sente, eles sentem também!”. A música convoca para o enfrentamento e lembra de
revoltas populares, como o “inverno russo” que acarretou a queda do nazismo: “Sou
o terror desse tal ‘baile sem fim’ da burguesia, não tenha medo, mas o inverno
tá chegando”.
“Ainda” é o encontro de Afrika
Bambaataa e Bezerra da Silva na rua 24 de Maio no centro de São Paulo em 1984. O
beat transborda a genialidade do Tropkillaz e remonta as origens do Hip Hop
quando os DJ’s e b.boys eram o centro das atenções do movimento. O instrumental
é nostálgico, um miami bass que transmite essa áurea oitentista. Já a letra,
cantada por Marcelo, carrega a malandragem de um Bezerra e vem como uma
resposta para aqueles que, porventura, possam perguntar: “depois de 30 anos,
vocês ‘ainda’ falam de maconha?”, assim como D2 respondeu em seu disco solo,
Assim Tocam Meus Tambores, “aquele maconheiro ainda”, a resposta é enfática:
Ainda!
“Remedinho” tem uma construção
diferente que destoa das demais faixas do álbum onde D2 canta com voz embargada
quase que acapella, não fosse o acompanhamento dos teclados de Apollo 9. A
letra E toda aquela hipocrisia rechaça a hipocrisia (novamente) quanto às
drogas e traça o paralelo entre o lícito e ilícito: “E toda aquela hipocrisia pra
cima da gente: Remedinho pode, cocaína não / Cervejinha pode, bagulhinho não”.
O grupo carioca de música
eletrônica Tantão e os Fitas participa da música “Veias Abertas” um hardcore
sobre a América Latina e suas veias abertas: “Genocídio após genocídio, as
veias ainda estão abertas, roubaram tudo que é nosso e nos jogaram no meio da
guerra. O Brasil tá em guerra, América do Sul em convulsão, ao som do Piri Pak
explode a população”.
Zé Gonzales é o autor da
vinheta “Planeta Maconha” com colagens de programas televisivos que tentam
explicar o que é o Planet Hemp, destaque para o sample de “Vai, Planeta! / Nossa,
eu não tô sentindo o odor hoje, hein, crianças?", do desenho animado
Capitão Planeta.
Fechando o álbum Jardineiros
temos “Onda Forte”, música que trás samples de um dos maiores nomes do funk contemporâneo
do Rio de Janeiro: MC Carol. Carolina de Oliveira Lourenço, que mais tarde se
tornaria a MC Carol, nasceu na mesma época que o Planet Hemp, um ano depois que
seus conterrâneos, em 1993. A MC é ativista filiada ao Partido Comunista
Brasileiro e através do funk faz uma verdadeira revolução do proletariado. O
sample utilizado vem de “Bateu Uma Onda Forte”, faixa 6 do disco Favela Funk de
2013. Na letra de Carol, a MC rima: “Caralho, caralho, bateu uma onda forte, tô
vendo um macaco, em cima do poste”. Marcelo D2 resgata essa frase no trecho
“enquanto
eu aqui tô vendo macaco em cima do poste” e BNegão segue a brisa vendo “borboletas
no espaço, águas marinhas no céu, aquele plim na cabeça”. A música transmite a
paz que a planta traz, diferentemente da tensão que a guerra às drogas propõe,
a hipocrisia é posta, mais uma vez, em xeque no verso de Bernardo: “Fico de
cara, a planta é vida e segue proibida. Agro-venenos seguem liberados à serviço
da morte”.
Jardineiros é o disco do
Planet Hemp com o maior número de participações, feats variados que fazem com
que a obra seja diversificada, afinal; monocultura é a maior sequela. D2 e
BNegão seguem na linha de frente rimando, queimando, sobrevivendo, no baixo
lendário um dos remanescentes da formação original: Formigão, na bateria está
Pedro Garcia, mais conhecido como Pedrinho e que está na banda desde o Ao Vivo
MTV , de 2001. Aliás, foi no estúdio do Pedrinho que boa parte das músicas
forma gravadas, e fechando a ex-quadrilha da fumaça temos a guitarra de Nobru, mas
ainda há as contribuições de Zegon (e Tropkillaz) e Nave nos beats, Apollo 9 na
programação e produção de um amigo das antigas e responsável por trabalhos
anteriores da banda: Mario Caldato Jr.
Planet Hemp segue queimando tudo até a última ponta e ao contrário do que a crendice popular alega, os maconheiros não têm amenésia e não esquecem suas origens e as mazelas que o Brasil carrega. O fato é que o bonde dos maconheiros, regados à amnesia, apresenta em Jardineiros um trabalho sólido e candidato um dos melhores discos dos últimos anos, mas essa deixo pra vocês.
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