Quero começar esse texto dizendo que não sou daqueles que quando uma obra é lançada se foca no que faltou ao que foi de fato apresentando ali. Acho um deserviço quando um artista lança um disco novo e alguém comenta que falta um feat ou um instrumental de um jeito ou de outro. é como se as pessoas olhassem apenas para a ausência e não para o conteúdo. É como se somente a falta fosse importante e não o restante. Isso é chato, pois todo o trabalho para levantar o restante passa batido e o todo não é degustado como merecia.
Podem até interpretar como click bait o título desse texto, depois de lerem essa introdução. Mas de fato houve alguns pontos sensíveis que faltaram no filme sobre Edi Rock, KL Jay, Ice Blue e Mano Brown. Tópicos que, ao analisarmos mais minuciosamente, percebemos que corroboram para o apagamento de alguns nomes importantes não só para o grupo, mas para o país também.
Racionais: Das ruas de São Paulo
pro mundo é uma obra-prima, uma baita filme e um afago que os fãs do grupos
estavam precisando desde muito tempo. Esse documentário é para ser visto e
revisto a exaustão, e mesmo, desde o lançamento dois dias atrás, já assisti ao
menos umas cinco vezes, e pretendo assistir outras tantas mais. E esse sucesso
tem um nome, um responsável além do Racionais, trata-se de Juliana Vicente fundadora
da produtora Preta Portê Filmes e que não só dirigiu o filme como também assina
o roteiro. Juliana conta com diversos trabalhos que evidenciam temáticas negra,
indígena e LGBTQIAP+, e tem mais 40 filmes no currículo, muitos deles com
exibição e prêmios fora do país.
O Racionais é sem dúvida o maior grupo do rap brasileiro e talvez da América Latina, não fosse a barreira linguística, essa minha tese seria comprovada. Aliás, o filme curiosamente não possui legendas em espanhol, somente em francês, italiano, alemão e inglês, além de ser dublado para o idioma do Public Enemy. E devido à toda essa grandeza é natural que o grupo tenha teto de vidros, afinal não são e nunca foram imunes a críticas. Também nunca serão. Obviamente que é impossível passar por tudo que esses caras fizeram ao longo de mais de 30 anos, não cabe num filme e nem numa série. Muitas coisas são resumidas e outras priorizadas, e se o Racionais é religião, algumas coisas são pecados ao terem sido mostradas, Aqui listo 5 delas que o documentário não mostrou, mas deveria.
1. Sharylaine
A essa altura você sabe que Sharylaine é a pioneira do rap nacional. Mulher preta e periférica que abriu caminhos para que muitas meninas pudessem rimar. Se essa informação é nova, é necessário sair desse post, pesquisar um pouco e depois voltar. O Racionais é a junção de dois artistas da Zona Norte, KL Jay e Edi Rock, com dois artistas da Zona Sul, Brown e Ice Blue. O primeiro registro fonográfico do Racionais é a coletânea Consciência Black (vol 1), que trouxe também os grupos Street Dance e Criminal Mater; a Equipe Zâmbia; Frank Frank, MC Gregory, Grand Master Rap Junior e Sharylaine, ou Sharon Line, como foi grafado à época. A coletânea permitia apenas uma faixa por artista e para driblar isto, o Racionais lança “Pânico na Zona Sul”, como grupo, e Edi Rock lança “Tempos Difíceis” de forma solo, com participação do KL Jay. Essa é a parte da história que é bem conhecida, porém um fato pouco difundido é de que a Sharylaine quem conseguiu colocar o Racionais na coletânea, como Edi Rock menciona no vídeo abaixo (entrevista do Racionais MC’s no Red Bull Station, durante o Red Bull Music Academy Festival São Paulo 2017) no instante 09:40:
Pois bem, se foi Idslaine Monica Da Silva, a Sharylaine, que conseguiu que o grupo gravasse seu primeiro disco, mesmo que indiretamente, e o Racionais decolou a partir daí, o nome de Sharylaine deveria ser mais difundido quando o intuito é contar a história do Racionais, pois assim como o quarteto a trajetória da mulher se confunde com a de São Paulo e do rap. Em um documentário como este, com o alcance que a marca Netflix trás, seria mais do que importante dar nome, rosto e voz a mulher negra que foi alicerce para os marmanjos.
2. Milton Sales
Milton Sales está no documentário, seja em algumas lembranças dos integrantes do grupo ou na imagem de um Miltão de trinta anos atrás, mas jovem e queimando um baseado, laser que hoje em dia ele abomina. Milton Sales foi empresário do Racionais, mais que isso, ele quem juntou KL Jay e Edi Rock a Mano Brown e Ice Blue, ele quem segurou as pontas muitas vezes e que ajudou o grupo a decolar. O grupo não esconde isso, porém sentimos falta de um pouco mais de Sales no doc Das ruas de São Paulo para o mundo. Talvez até a sua presença, real e intensa.
Sabemos que existe uma imbróglio jurídico
entre o empresário e o grupo. Em 2019 a revista Veja São Paulo publicou uma capa
intitulada Racionais: 30 anos de hits e tretas. A matéria trazia a confusão que
envolvia as duas partes, a troca de acusações e o andamento do processo. Com um
contexto desse seria difícil trazer Milton Sales para depor no documentário ou
mesmo proporcionar que as falas a respeito de sua figura fossem mais
elaboradas.
Um dia depois da estreia do doc na Netflix, Milton Sales foi entrevistado do programa Gringos Podcast, com Ney e Erick Jay. O empresário já havia assistido ao filme e durante o bate papo revelou suas impressões sobre a obra e o grupo.
3. Inspirações
Durante o documentário Das ruas de São Paulo para o mundo, KL Jay lembra a época da São Bento e de seus icônicos personagens, como Thaide e MC Jack. Fora esse momento, os contemporâneos dos anos 1980 não são mais lembrados. Vale ressaltar que naquele período, diferentemente de hoje, não havia um rapper em cada esquina, e ser MC era ser alienígena. Somente um louco reconhecia e valorizava o outro. Os rappers estadunidense já invadiam o Brasil e inspiravam a juventude, porém para um rapaz de quebrada ter a certeza de que era possível fazer rap em “brasileiro”, era quando esse via outro igual a ele lhe mostrando o caminho. Em 2015 o alienígena de Niterói, Gustavo Black Alien, lançou seu segundo disco: Babylon By Gus Vol 2 – No Princípio Era o Verbo. No álbum há a participação de Edi Rock que rima: “Eu sou daquele tempo que só nós acreditava, com walkman no ouvido, adormecia e bolava. Sonhava em ser Thaíde, os cara um por um: Black Juniors, MC Jack, DJ Ninja e DJ Hum”. Edi Rock explicita suas referências.
Mano Brown em mais de uma ocasião falou que Thaide fora quem lhe inspirou a catar. Altair Gonçalvez era a referência de jovem periférico que os outros jovens periféricos tinham quando o assunto é rap. Em sua passagem pelo programa Panelaço, do João Gordo, Brown falou sobre Thaide. Já Kleber foi um produtor desde a fase inicial do Hip Hop e obviamente não nasceu aprendendo, os primeiros beats que criou foram feitos na bateria eletrônica do Giba, do Região Abissal, figura crucial para o seu desenvolvimento no rap. O documentário poderia ter abordado mais essas influências que os quatro pretos têm, sobretudo quando esses são contemporâneos, artistas dos gueto brasileiros.
4. Relação com a Mídia Hegemônica
Esse ponto talvez é o que menos fez/faz falta, porém é interessante saber como que o grupo sem tocar em grandes rádios e sem ir à TV conseguiu vender 1.500.000 do álbum Sobrevivendo no Inferno. O como, sabemos. Porém o documentário, mesmo que feito para nós, será consumido por diversas faixas econômicas e será material de uso nas universidades, assim como as letras são. Então, é importante que nessa ocasião o Racionais explanasse sobre esse tema e trouxessem sua análise sobre o assunto. Hoje existem várias teses acadêmicas sobre essa relação entre o grupo e a mídia, inclusive existe um documentário independente, Racionais Mc’s – 25 anos no Movimento, feito na universidade, dirigido por Bia Bem e com roteiro de Barbara Rocha e Lucas Conti.
Depois que os podcasts pipocaram as entrevistas com rappers, outrora raras, ficaram comuns. Inclusive Mano Brown tem o seu Mano a Mano e Ice Blue está em vésperas de estrear o seu Tobogã. Nesses papos descontraídos eles revelam curiosidades de suas composições.
Temos
JL Jay falando do sample de “Vida Loka II”, Edi Rock explicando “Negro Drama”,
ou Mano Brown falando de “Jesus Chorou”, mas ainda é raro termos mais detalhes
dos insight, das entrelinhas, da construção das bases ou o que representa
aquele instrumental para o grupo. Me recordo de uma entrevista do Marcílio
Gabriel, do Programa Freestyle, onde ele falava sobre a vez que conversou com
Brown e sobre como era importante falar com o MC sobre música, afinal, ele é
músico.
Brown é uma voz forte e contundente sobre política, genocídio do povo
preto e racismo, sobre a negligência do estado a violência da polícia, mas
poucos buscam conversar com Mano sobre o que ele faz e respira 24h: a música.
Documentário poderia ter caído apar essa linha e mapear algumas músicas
icônicas para falar sobre seus bastidores. A missão seria quase impossível de
escolher algumas entre tantos clássicos.
Concordo que faltou alguns pontos muito importante do começo.
ResponderExcluirCreio que duas datas estão incorretas no texto:
ResponderExcluir"os contemporâneos dos anos 1890 não são mais lembrados"
Não seria 1980?
"2105 o alienígena e Niterói..."
2015?
Obrigado irmão, corrigido no texto.
ExcluirO que acontece sobre o Miltão é que sem hoje tem desavenças não tem nem como se aprofundar muito sobre a pessoa, igual o Kaskão (T$G) que nem aparece , sendo que ele teve muito envolvimento com o grupo
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