O intuído não é defender o
indefensável ou praticar um dos verbos mais populares dos webtribunais, ao lado
do "cancelamento", que é o "passar pano", mas sim trazer um
panorama sobre "Pobre Paulista". De fato, a canção composta por Edgar
Scandurra é xenófoba e racista e isso não é interpretação, é contestação.
Antes de o Ira! se tornar a
banda conhecida em todo o país, o núcleo base formado por Nasi e Scandurra
integraram o Subúrbio, uma banda de colegial e de ideologia punk. Muitas letras
do Ira! vêm dessa fase. Nesse momento, o underground paulistano começava a se
movimentar e criar uma cena que transitava entre o punk - nem tão contestatório
assim naquele período - e a new wave, também conhecia como pós punk. O Ira! era
uma banda de ligação entre esses dois movimentos. Começavam a apontar bandas
como Titãs, Mercenárias, Cabide C, Azul 29, Voluntários da Pátria e (argh!)
Ultrage a Rigor. Como uma característica da época, era comum que músicos
transitassem em mais de uma banda, como por exemplo Edgar, que além do Ira!
tocava na Cabide C, e Nasi que também fora vocal da Voluntários da Pátria. Era
a última década dos militares no poder e havia anseio pela liberdade regada a
rebeldia da juventude, as letras tinha essa carga. Nasi tentou faculdade e no
Campus integrou movimentos estudantis, assim como Scandurra, se considerava um
cara de esquerda. Tanto que o nome Ira, que só mais tarde ganhou a grafia de
Ira! e passou a conotar o sentimento, em seu início, era o acrônimo para Irish
Republican Army (Exército Republicano Irlandês) que peitaram o imperialismo
britânico nos séculos XX e XXI.
Mas por que uma banda com
integrantes de posicionamento à esquerda fez uma música xenofóbica e racista?
Primeiro vamos as linhas
polêmicas:
"Dentro de mim sai um monstro,
Não é o bem nem o mal,
É apenas a indiferença,
É apenas ódio mortal.
Não quero ver mais essa gente
feia,
Nem quero ver mais uns
ignorantes,
Eu quero ver gente da minha
terra,
Eu quero ver gente do meu
sangue"
Agora às explicações: Edgard
Scandurra defendeu por anos que quando escreveu a canção era muito jovem e não
sabia bem que tais linhas poderiam soar como racismo ou xenofobia. Dizia ser um
grito de rebeldia e vendia essa visão, também tentou ressignificar a letra ao
dizer que "gente feia" eram os militares que usurpavam o país naquele
período. Digamos que a música teve uma leitura diferente para três grupos de
público, o primeiro que entendeu aquilo como música e não entendeu nada letra;
o segundo aqueles que a enxergaram como um flerte ao fascismo e teceram todas as
críticas cabíveis (além do fato de um vocal com o nome de Nasi não ajudar a
amenizar a situação!); e o terceiro, aqueles que viram um hino paulista, uma
música que manifesta a "pureza" paulistana, a "gente do meu
sangue", ou seja, sem a migração, principalmente nordestina que adentrava
a capital de São Paulo.
A xenofobia paulistana é uma
doença de longa data, creio que ficou bem escrachada nas duas últimas eleições
para presidentes do Brasil. Em 2014 e 2018 as forças reacionárias ganharam
território no sul e sudeste do país, locais onde já eram majoritariamente
maioria, mas reafirmaram tal posição e atacaram eleitores do nordeste, reduto
onde o PT, principal oposição em números de votos, ao neofascismo que se
estabeleceu com Jair e sua corja. Em São Paulo, quase que junto aos punks,
também surge um grupo que mais tarde ficaria conhecido como Carecas. Peço
perdão aos punks pela analogia, mas essa tribo e como se fossem os "punks
do mundo invertido". Eles curtem um estilo de música com acordes e ritmo
similar ao punk rock (mas não ouso chamar de punk), têm vestimentas carregadas,
coturnos, roupas pretas e camufladas, a primeira vista poderia até se confundir
com algum punk ou adepto do hardcore, mas observando melhor existem alguns
adereços que os diferem: as cores e bandeiras do estado de São Paulo ou dos
Confederados (símbolo de racismo do sul dos Estados Unidos). Os Carecas são de
direita e muitas vezes fecham com os White Powers e Neo Nazi, a imprensa
brasileira, influenciada pelo cinema, os chama de Skinhead - cabeças pelada. No
entanto, vale ressaltar que os skinheads originários eram filhos de
trabalhadores portuários ingleses e que colavam com imigrantes jamaicanos para
curtirem ska e rasparam a cabeça devido uma infestação de piolho nos navios.
A chegada do punk em São Paulo
foi turbulenta, João Gordo, em seu livro La Vida Tosca, narra esse período, os
punks eram machistas, homofobicos e despolitizados, - inclusive Gordo lembra de
um que tinha uma suástica tatuada na cara - aqueles jovens queriam apenas beber
e fumar e não seguir regras, principalmente aquelas impostas em casa, pela
familia. Porém surgem lideranças que buscaram organizar o movimento, entre elas
Redson da banda Cólera. Enquanto os punks se organizavam baseando sua ideologia
no anarquismo e aqui é bom frisar de que o punk não nasce anarquista e sim ele
se encontra com o anarquismo, os Carecas tão bem vão se organizando como um
movimento nacionalista, muitas vezes baseado no Integralismo, e em alguns casos
fechando com supremacistas brancos e neonazistas, o que acarreta à caça de
nordestinos, negros e gays pela miscigenada São Paulo.
Mas então Scandurra escreveu
essas infelizes linhas inspirado pelos Carecas? Bem provável que não. Não há histórico
de que o guitarrista andava com essa tribo, pelo contrário sua gang era os
punks e os movimentos estudantis.
Então por que tamanha
infelicidade?
Edgar deve ter se baseado nos
preconceitos estruturais que permeiam na sociedade: um sentimento de
superioridade do sudeste e a xenofobia contra imigrantes nordestinos. Talvez, e
só talvez, quando escreveu essas linhas não aflorava na primeira camada esses
sentimentos, mas no subconsciente vinha esse "ódio mortal", ou como
ele também define: "Dentro de mim sai um monstro".
Em entrevista para O Baú dos
Clássicos, Scandurra segue com aquele papo de que escreveu a letra como um
grito de rebeldia e tal, não havia se tocado quanto ao seu teor. Quando o Ira!
lança seu primeiro compacto, o IRA (1983), o programa Olho Mágico (1984), da TV
Gazeta, com os críticos musicais Mauricio Kubrusly e José Ramos Tinhorão, onde esse
último tachou a banda como fascista devido a "Pobre Paulista" e o
fato de o guitarrista tocar com um bracelete com a bandeira de São Paulo e o
vacal se chamar Nasi.
Quando ao apelido de Marcos
Valadão, ele explica em entrevista para a Trip: "Tive muito problema com
isso. Esse foi um apelido que eu tive no colégio, passava Holocausto, uma série
na televisão que tinha a popularidade que o Big Brother tem hoje. Nessa fase do
colegial, eu era tão briguento e tão revoltado com a escola estadual que
começaram a me chamar de nazi, de nazista, na verdade. No primeiro disco do
Ira!, eu assino Marcos Valadão, e tem muita gente que até hoje fala assim
“poxa, e como é que foi que você entrou no Ira!?”. E como apelido que pega é
aquele que o sujeito não gosta, nazi pegou. Com o tempo Valadão mudou a grafia
para Nasi para tentar aliviar a carga.
No livro A Ira de Nasi, de
Mauro Beting e Alexandre Petillo, Scandura diz: “Eu tinha uma agressividade grande
típica da adolescência. Fiz essa letra que provoca reações nas pessoas. Fiz
meio que consciente disso. Era meio difícil de defender que não tinha nada de
fascismo ali... Você pegava o verso e estava toda a violência: Não quero ver
mais essa gente feia/ Nem quero ver mais uns ignorantes/ Eu quero ver gente da
minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue. É dura, mas eu trabalhava todos
os meus conhecimentos de como era o punk. Eu via bandas usando a suástica e ao
mesmo tempo tocando reggae e música negra, lutando contra o racismo e contra o
fascismo, então existia uma ambiguidade que era uma coisa de provocar, de
querer produzir reações nas pessoas de forma agressiva através de alfinetes.
Era uma coisa que tentei fazer da minha maneira, que era fazer uma música polêmica
para ver que fantasmas que vão surgir de cada um. Aí pintaram os fantasmas mais
horríveis. Morrei em Recife, tive amigos de todas as cores, todas as raças,
nunca tive preconceito com ninguém. Só quis trabalhar com polêmica, falar de
São Paulo... Se perguntar para muita gente qual a música que mais gosta da
banda, qual a primeira que vem na cabeça, vão dizer “Pobre Paulista”. Mas eu
concordo que ficou uma mensagem dúbia. Aproveito para pedir desculpas pelas
pessoas que se sentiram agredidas pela música”.
O fracasso na ressignificação
da letra
Quando Scandurra percebeu que
realmente havia sido xenófobo e racista ao escrever "Pobre Paulista",
passou a defender a história de que se tratava de uma metáfora, uma crítica a
ditadura militar. Nasi e demais membros da banda compraram a ideia e seguiram
tocando-a no repertório do Ira! até um fatídico dia, que Nasi conta na mesma
entrevista para a Trip:
"Essa música é de antes
do Ira!. O Edgard fez quando era Subúrbio ainda, quando eu conheci ele no
colégio. Eu olhava essa música e tinha uma outra leitura sobre ela. Eu achava
que era sobre rebeldia juvenil, sobre a opressão… Quando nosso clima estava
ruim, eu estava num bar com minha ex-namorada e um casal de amigos, depois de
um show do Acústico MTV. Apareceu o Edgard bem na hora que o meu amigo estava
falando sobre “Pobre paulista”. O Edgard senta na mesa e diz assim: “Olha, não
é nada disso, não tem nada dessa história de rebeldia juvenil. Realmente é um
preconceito contra a invasão de nordestinos, era o que eu estava pensando na
época e foi isso o que eu quis dizer mesmo, eu não aguentava essa coisa de
música baiana, de Caetano, de Gil”. Na hora, esse foi mais um dos insights que
eu tive. Puta que o pariu, defendi durante anos essa letra, carreguei essa
cruz. Agora, naquele dia, eu saí de lá falando assim “eu nunca mais canto essa
música”.
Em 2007 o Ira! anuncia seu fim.
A relação entre Edgar e Nasi estava desgastada, mas o pivô da treta foi a briga
entre os irmãos Valadão, onde o irmão de Nasi, Airton Valadão, era o empresário
da banda. Com isso, os ex-integrantes do Ira! partiram para os projetos
paralelos. Em 2012, Nasi e Airton fazem as pazes, o vocalista disse que não
queria voltar com o grupo, mas que queria retomar a amizade com Scandurra. Foi
questão de tempo para o Ira! voltar, sem “Pobre Paulista” no repertório. Em
2015 o Ira! divide palco com Rappin Hood no Rock in Rio.
O Ira! não foi a única banda
com música polêmica em sua formação. Garotos Podres é outra banda que carrega
esse estigma. Em 2021 começou a circular uma capa de álbum fake no qual o
Garotos teria gravado uma música racista. Mao explicou que “Em 1984 os Carecas
iam - infelizmente - em nossos shows. [...] Achávamos isso um absurdo, já que a
maioria dos Carecas eram filhos de imigrantes nordestinos. Daí um amigo da
banda junto com um ex-integrante dos Garotos Podres fizeram esta música, com o
intuito de "zoar" os Carecas. [...] Tocamos ela pouquíssimas vezes,
com intuito de demonstrar a incoerência dos chamados Carecas do Subúrbio. Chegamos
a gravar uma demo que continha essa música, mas não entrou em nosso primeiro LP
"Mais Podres do Que Nunca" - 1985, por insistência minha (tinha
certeza que seriamos mal interpretados). Assim como também fui contrário a
inclusão da música "Führer" no álbum pelo mesmo motivo. Mas fui
"voto vencido" no caso desta última música que, acabou entrando no
álbum”. – Post de Mao no Facebook.
No rap, os anos 90 estão
repletos de letras com conteúdos homofóbicos e machistas e talvez o mais
emblemático dos casos está em “Mulheres Vulgares”, do Racionais MC’s, canção
que foi abolida do repertório do grupo. Apesar da letra ser de Edi Rock, Mano
Brown deu a letra sobre o assunto: “Fui criado de maneira machista, mas o mundo
está mudando – e para melhor. Não podia continuar errado desse jeito. Não faz
nenhum sentido o homem ser beneficiado só por ser homem; é injusto. Eu
acompanho esse processo dentro de casa, com minha esposa, minha filha – vivo
cercado de mulheres. No momento em que entendi que, se eu não respeitar uma
mulher, não vou respeitar ninguém, aí ficou fácil. [...] Então mudei como
pessoa, minha música mudou, minha abordagem, o entendimento do mundo… O homem
tem tendência a narrar o que está em volta dele. Minhas canções têm essa força
das ruas, das gangues. Parei para analisar que esse universo masculino também
provoca o sofrimento das mulheres”. Depoimento de Brown à revista Claudia.
Afff
ResponderExcluirÓtima reflexão!!! De fato nosanos 80 e início dos 90 aibda nao se tinham muita consciência das coisa e se queria apenas polemizar e infelizmente muita merda era dita. Felizmente muitos amadureceram!!!!
ResponderExcluirEste comentário foi removido por um administrador do blog.
ResponderExcluirAnônimo nazistinha
ExcluirMais enviesado impossível!
ResponderExcluirMuda o nome do blog aí. Blog do arco-íris 🌈 . Sua crítica soa como choro e claramente com viés político.
ResponderExcluirBoa reflexição! Creio q cada um dos artistas tenha uma música com alguma coisa que hj é inviavel, saber entender o momento em q a música foi criada e vida q segue!
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