Diretamente de Porto Rico vem
uma das mais contentes críticas ao imperialismo e descaso com os povos
americanos, principalmente os originários. Residente apresenta um audiovisual
que choca, repleto de referências aos acontecimentos no continente nos últimos
anos e em sua letra protesta contra o vizinho de cima e os governos latinos que
se curvam a eles.
“This Is Not America” tem
participação de Ibeyi, as irmãos gêmeas franco-cubanas Lisa-Kaindé
e Naomi Díaz, aliás “ibeyi” é um termo em iorubá para gêmeos. Já Residente,
nome de René Pérez, foi o fundador do grupo Calle 13 junto de seus meios-irmãos
Eduardo Cabra, o Visitante, e Ileana Cabra a PG-13. Na infância viviam na calle
13 (rua 13) na subseção El Conquistador de Trujillo Alto. O local era fechado e
o guarda na portaria perguntava a quem chegava: “¿Residente o visitante?”
(Morador ou visitante?). René era morador, o Residente, e Eduardo o Visitante, quando
passaram a cantar adotaram esses como nomes artísticos. Por fim, a irmã Ileana
passa a usar o nome PG-13 em referência a classificação estadunidense para
filmes não recomendados a menores de 13 anos, já que a garota era uma
adolescente quando começou a cantar com seus irmãos.
Logo de cara temos a referência no
título que busca um contraponto à música de Donald Glover, o Childish Gambino,
em “Thi Is America”, trabalho em que o artista protesta contra o racismo nos
EUA. Residente em suas últimas linhas, rima:
“Gambino, mi hermano
Esto sí es América
Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde”
Nesse trecho, Residente faz uma correção ao que Gambino canta, dizendo que esta (América Latina) é a verdadeira América. No entanto, o intuito não é afrontar Donald Glover e sim complementar sua visão, por isso o tratamento cordial o chamando de irmão. Nesse momento da letra, o clipe mostra um assassinato de um músico dentro de um estádio de futebol, uma referência a Víctor Jara, ativista, artista e professor chileno morto em 1973 pela ditadura de Pinochet.
Voltando ao
começo da canção, Residente começa lembrando a todos da presença latina e que os
Estados Unidos promovem um apagamento quanto a sua contribuição para a
sociedade e somente se recorda quando é de forma pejorativa:
“Estamo' aquí
Oye, que estamo' aquí
Mérame, estamo' aquí”
As imagens
mostram as diferentes culturas indígenas do continente, e imagina o mundo
moderno com monumentos erguidos em homenagem aos povos originários, como um
nativo no lugar da Estátua da Liberdade ou construções incas, maias e astecas em
meio aos arranha-céus das metrópoles. Residente lembra que esses povos já estavam
aqui quando os opressores chegaram:
“Desde hace rato, cuando ustedes llegaron
Ya estaban las huellas de nuestros zapatos
Se robaron hasta la comida'e gato
Y todavía se están lamiendo el plato”
Na
sequência o clipe mostra a repressão policial nos manifestos populares nas ruas
do continente. Sempre a favor do estado e contra o povo, a polícia usa de
violência para censurar protestos. Residente, um artista, usa da arte como
instrumento de luta e aponta que para contestar tem a cumbia, bossa nova, tango
e vallenato, ritmos da Argentina, Brasil, Colômbia e Uruguai que sintetizam a
rica cultura latino-americana. Aqui há um brilhante jogo de imagens: um casal
dança tango em meio as cenas de conflitos, os personagens da dança, em suas
posições, são substituídos por policial e manifestante, o video alterna entre a
dança e a violência. Muitas bandeiras de países latinos são apresentadas.
“Bien encabrona'o con estos ingratos
Hoy le doy duro a los tambores
Hasta que me acusen de maltrato
Si no entiendes el dato
Pues te lo tiro en cumbia
Bossa nova,
tango o vallenato”
Seguindo,
Residente lembra da cidade de Tombuctu, grafada em inglês como Timbuktu.
Localizada no centro de Mali e foi soterrada pela areia do deserto do Saara,
por isso o “con sangre caliente como Timbuktu”. Um dos maiores rappers de todos
os tempos, Tupac Amaru Shakur é lembrado, porém para revelar que seu nome é
inspirado no líder indígena Túpac Amaru II do Peru, que viveu de 1738 a 1781 quando
foi executado após comandar uma rebelião contra os espanhóis. Os pais do Tupac
dos EUA eram membros dos Panteras Negras e se identificaram com a história de
vida do peruano e assim o homenagearam batizando o filho. Uma cena do clipe
mostra um manifestante sendo arrastado pela polícia, os homens da lei o puxam,
cada um por um membro, essa é uma referência a um episódio que ocorreu com
Túpac Amaru II, que teve seus membros superiores e inferiores amarrados em
cavalos para que cada animal puxasse em uma direção diferente, na tentativa de desmembrá-lo,
não obtendo êxito, os espanhóis o esquartejaram e depois o decapitaram.
“A lo calabó y bambú, bien frontú
Con sangre caliente como Timbuktu
Estamos dentro del menú
2pac se llama 2pac por Túpac Amaru del Perú”
Os latinos
estão cansados de saber que América não é um país e sim um continente, mas
ainda há muita confusão, principalmente no que diz respeito ao gentílico “americano”,
o termo deveria ser usado para designar todo indivíduo nascido no continente
americano, seja ele da América do Norte, do Sul ou Central. Para se referir
aqueles oriundos dos Estado Unidos, temos o gentílico estadunidense. Residente
compara com o continente africano, é o mesmo que dizer que a África é apenas o
país de Marrocos.
“América no es solo USA, papá
Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá
Hay que ser bien bruto, bien hueco
Es como decir que África es solo Marruecos”
Residente
continua batendo contundentemente na tecla dos povos originários e aponta que o
calendário criado pelos maias, o qual é um sistema de calendários e almanaques
distintos que podem ser sincronizados e interligados, para que suas combinações dêem origem a ciclos adicionais mais extensos, é usado pela ciência contemporânea e ajudou a compreender melhor as noções de tempo. Outra referência é a mitologia
Valdivia uma
cultura arqueológica pré-colombiana que se desenvolveu durante o Periodo
Formativo Temprano, entre os anos de 4400 a 1450 AC, esta cultura ocupou as
terras baixas da costa oeste do Equador, território que hoje corresponde as províncias
de Guayas, Isla Puná, Los Ríos, Manabí e El Oro.
“A estos canallas
Se les olvidó que el calendario que usan se lo
inventaron los Mayas
Con La Valdivia Precolombina
Desde hace tiempo, ah
Este continente camina”
Residente
também leva em sua letra uma referência a um movimento social porto-riquenho, ao
citar que: “El machete não é só para cortar cana, mas também é para cortar
cabeças”. O “machete”, em português “facão”, é o símbolo de Los Macheteros, o
Exército Popular Boricua (boricua é o gentílico usado, em castelhano, para
designar os nascidos em Porto Rico), grupo luta para que o país se tone independente dos Estados Unidos. Além disso, o machete está em pingente que
Residente usa durante o clipe.
“Pero ni con toda la marina
Pueden sacar de la vitrina la peste campesina
Esto va pa'l capataz de la empresa
El machete no solo es pa' cortar caña
También es pa’ cortar cabezas”
No refrão,
cantado pelo duo Ibeyi, novamente referência ao machete, em algo que traz um
sentido próximo de: “Se me provocar, meu facão te corta!”. O refrão segue
mantendo a ideia de América Latina unida e preparada para a luta, mesmo sabendo
das desvantagens que têm.
"Aquí estamos, siempre estamos
No nos fuimos, no nos vamos
Aquí estamos pa' que te recuerdes
Si quieres, mi machete te muerde"
Logo após o
refrão, o rapper lembra dos conflitos entre a classe trabalhadora, de um lado milicias,
do outro guerrilheiros. O caso mais emblemático é das FARC-EP na Colômbia e Exército
Zapatista de Libertação Nacional, do México. Também são referenciados os crimes
cometidos pelo estado em favor da censura, o assassinato de jornalistas que
fizeram denuncias e o caso Ayotzinapa, ocorrido em 2014 no interior do México: quarenta e três estudantes da Escola Normal Rural de Ayotzinapa, planejavam manifestação
contra o prefeito de Iguala, mas misteriosamente desapareceram na noite 26 de
setembro de 2014. No clipe, há imagens de referência com jovens com furos de
bala em suas testas, já que relatos apontam que enquanto pegavam o ônibus foram
baleados por pistoleiros e milicianos.
“Los
paramilitares, la guerrilla
Los hijos del conflicto, las pandillas
Las listas negras, los falsos positivos
Los periodistas asesinados, los desaparecidos”
Seguindo,
Residente lembra dos golpes de estado em todo o continente. Governos latinos
democraticamente eleitos foram destituídos para que militares, a serviço dos
EUA, assumissem e governassem com mão de ferro em favor das elites. Como
consequência: perseguições, desaparecidos, assassinatos, corrupção, desvalorização
da moeda e uma herança que são políticos aliados a interesses de cartéis.
“Los narcos gobiernos, todo lo que robaron
Los que se manifiestan y los que se olvidaron
Las persecuciones, los golpes de Estado
El país en quiebra, los exiliados
El peso devaluado”
Ainda como decorrente
dos golpes militares, Residente segue listando as consequências. A
instabilidade em um país acarreta o fluxo imigratório e a conversão de um
cidadão com todos os direitos resguardados pela constituição de sua pátria em
um “ilegal”. Um exemplo dessa desmoralização institucional foi a Argentina de
2001, que Residente referencia, foram 11 presidentes em apenas 5 dias, que
começou com a renúncia de Fernando de la Rúa. No entanto, o número de pessoas
que assumiram o executivo em tão pouco tempo foi o de menos, o mais grave foram
as 39 vítimas da repressão comandada pelo governo para reprimir as
manifestações que aconteceram em todo país.
“El tráfico de droga, los carteles
Las invasiones, los emigrantes sin papeles
Cinco presidentes en once días
Disparo a quema ropa por parte de la policía”
Apesar das
ditaduras militares terem um outro contexto na segunda metade do século XX, a
primeira metade também sofreu com golpes e interferências. Assim Residente
categoricamente afirma que são mais de 100 anos de tortura, mas que ele, e sua
geração de artista contundentes, são a nova voz que brada nessa ditadura
contemporânea que nasceu de forma zelada e está cada vez mais exposta como uma fratura
de bala de borracha.
“Más de cien años de tortura
La nova trova cantando en plena dictadura
Somos la sangre que sopla la presión atmosférica”
Para além
da letra algunas referencias são mostradas no clipe: a começar com a chamada, o
título “This Is Not America” dentro do mapa dos EUA e em um fundo preto, é
inspirado em uma peça de videoarte do artista chileno Alfredo Jaar, que a
exibiu em 1987 em um letreiro na Times Square, em Nova York. Por sua vez a obra
é uma referência à pintura “A traição das imagens”, do artista belga René
Magritte, dedicado ao surrealismo. Em sua obra, René traz a figura de um
cachimbo e o texto “isto não é um cachimbo”.
O primeiro
tiro do clipe, disparado por uma mulher, é uma referência Lolita Lebrón e um
dos momentos mais icônicas da história latino-americana, quando em 1954, aos 34
anos de idade, ela fez um ato à sede do Congresso dos EUA, Lebrón dispara sua
arma no plenário e é presa. O motivo foi a reivindicação pela independência de
Porto Rico, causa que ela militava. Lolita ficou presa por 25 anos, até 1979
quando o então presidente dos EUA Jimmy Carter assina um indulto. Quando
Residente começa a cantar ele aparece algemado enquanto dois fardados o vigiam,
o rapper está sentado em uma privada e alguns rolos de papel higiênico estão ao
seu lado, uma referência a humilhação que latinos passam ao serem pegos
tentando cruzar a fronteira com os EUA e que, principalmente no governo Trump,
tiveram tratamento cada vez mais desumano. Uma cena mostra uma família separada
por uma grade, que simboliza a fronteira, pai e filho estão de um alado e a mãe
está de outro, a mulher coloca o seio na cerca para amentar o filho. Essa é a
sina dos que conseguem atravessar a fronteira, viver nos Estados Unidos e
levantar um dinheiro, para mandar para o outro lado, e alimentar seus filhos.
Há críticas
ao futebol, considerado o ópio do povo, e muitas vezes usados como manobra de
massa, por outro lado é a paixão na América latina, sobretudo no Sul, e muitos
movimentos sociais usaram o esporte como ferramenta de transformação e
engajamento. Porém no clipe Residente mostra a alienação que o futebol promove,
o descaso com a infância, o apagamento indígena e a negligência a pautas de
interesse público, além da vibração que uma partida promove e os torcedores não
encontram a mesma energia para aderirem às manifestações. Uma cena chama a
atenção dos brasileiros, o contraponto entre o êxito do futebol e a questão do
narcotráfico, de um lado um jogador do Brasil levantando a taça da Copa do
Mundo, do outro lado um torcedor com a camisa da seleção empunhando arma de
alto calibre.
Há
referência a religião, o catolicismo eurocentrismo que catequizou os povos indígenas
e os obrigou a mudar de crença para aceitar o deus colonizador. Muitas gangs
latinas acabaram adotando elementos religiosos em seus símbolos, como a virgem
de Guadalupe, protetora da América Latina e santa de devoção dos cartéis. Várias
armas são apontadas para Residente, para todas as direções que o rapper se
move, os revolveres, pistolas e fuzis seguem mirados a ele. Uma referência a perseguição
que latinos e negros sofrem nos EUA ou pessoas de classe social baixa sofrem em
qualquer país elitista ao entrarem em estabelecimentos comerciais. O
capitalismo também é denunciado com a imagem de crianças indígenas sentados em
pilhas de lixos vindos de conglomerados como McDonald’s, Starbucks e
Amazon.
O vídeo mostra
os conflitos entre manifestantes policiais, toda a arte e cultura sendo
assassinada, como o tiro que Víctor Jara recebe ou a marca de bala na cabeça dos quarenta
e três mexicanos, tudo isso prepara para uma das cenas finais com o corpo de
jovens empilhados como se a vida não importasse. As imagens são referência aos
protestos de 2021 na Colômbia em 2021, onde ativista performam deitando-se no
chão cobertos por bandeiras do país, remetendo a cadáveres.
Por fim,
uma referência ao pior presidente do Brasil e um dos maiores canalhas do mundo.
O chefe do executivo brasileiro come do bom e do melhor enquanto uma criança indígena,
caracterizada como alguma etnia tupi, porém que representa todas as tribos
brasileiras, assiste e passa fome. O governo desse fascista desmatou a Amazônia,
favoreceu o agronegócio e fez o que pode para prejudicar os povos indígenas. O
presidente mostrado no clipe, depois de se saciar com um bife, limpa a boca na
bandeira brasileira, Residente
disse em entrevista à BBC News Mundo que a figura retrata representa sim Jair
Bolsonaro: “Por mais que tenham cometido atrocidades, alguém que eu imagino
limpando a boca com bandeiras é Bolsonaro. É alguém que incendiou a Amazônia,
entende? Começou a destruir o continente”.
Confira na
íntegra o video clipe de “This Is Not America”:
Postar um comentário
0Comentários