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O Que Farias Tú? | O Salto - Do Confisco da Poupança à Desesperança na Música d'O Rappa

Jeff Ferreira
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O ano era 2003, O Rappa lançava seu primeiro álbum sem o seu principal letrista e baterista, além de criador da banda: Marcelo Yuka. O Silêncio Q Precede O Esporro teve 23 faixas alternadas entre vinhetas e músicas, uma delas sempre me chamou a atenção devido sua lírica, palavras fortes e a produção impecável de Tom Campone, além do time de músicos que participaram dela, me refiro a "O Salto".
 
Para entender o contexto dessa música, voltemos um pouco no tempo para o ano de 1990, onde no dia 16 de março o então presidente da república Fernando Collor de Mello comunicou que as quantias valores depositadas nos bancos, acima de 50 mil cruzados, seriam confiscados pelo governo. O engraçado (se não fosse trágico) é que Collor, durante campanha eleitoral em 1989, acusava seu principal adversário, o Lula, de que se eleito ele iria reter a minguada poupança dos brasileiros sob a alegoria do "fantasma do comunismo".
 
Os efeitos da ação de Collor resultaram em colapso, bem verdade que a inflação despencou, mas logo voltou a subir e os brasileiros estavam desprovidos de suas economias para absorver tal impacto. Até hoje muitas famílias sofrem com o desastroso plano do governo e muitos processos relacionados ao tema tramitam no Supremo. As fábricas não tinham reservas para pagarem seus funcionários, suas contas estavam zeradas, e como consequência passaram a demitir os trabalhadores e muitas delas fecharam as portas.
 
É nesse contexto sociopolítico que "O Salto" se apresenta, a música por si não traz esses elementos, mas ouvi-la juntamente com o seu videoclipe nos faz perceber de forma nítida as relações.
 
Logo no primeiro verso a personagem narra uma mudança drástica em sua vida, pois a decisão sobre o confisco da poupança aconteceu de forma súbita, sem que houvesse tempo para se preparar, restando-lhe sentar sobre as ruínas de sua nova situação.
 
"As ondas de vaidade inundaram os vilarejos
E minha casa se foi como fome em banquete
Então sentei sobre as ruínas
E as dores como o ferro a brasa e a pele
Ardiam como o fogo dos novos tempos"
 
Segundo o clipe, o trabalhador é desligado de sua fábrica, já que a mesma vai à falência devido ao Collor. Sem emprego e um filho pequeno para cuidar o desespero bate-lhe a porta. Essa passagem é compreendida na música com as linhas "E regaram as flores do deserto / E regaram as flores com chuvas de inseto". Não houve garantia alguma dada a população, somente a chuva de incertezas.
 
Um dos pontos mais fortes da canção é a a frase:
 
"Mas se você ver em seu filho
Uma face sua e retinas de sorte
E um punhal reinar como o brilho do sol
O que farias tu?
Se espatifaria, ou viveria o Espírito Santo?"
 
Pois além do sustento próprio aquele pai tinha um filho para criar, sem emprego e sem conseguir se realocar ele tenta, segundo o clipe, entregar o filho para que outra família o pudesse criar, mas a situação brasileira estava  padronizada, nivelada para baixo e ninguém queria aceitar tal proposta. O punhal citado é o pensamento negativo, a ideia de colocar um fim na situação da pior forma possível, com o suicídio. A moral, ao ser questionada, devolve a dúvida para aqueles que têm empatia: "o que farias tú?", é como se a personagem perguntasse se você esperaria um milagre ou partiria para uma ação desesperadora.
 
O ato de suicídio é uma consequência de ação nefasta do governo e modus operandi do capitalismo, onde a falta de recursos degrada o ser humano, seguindo o que já cantou Chico Science: "o de cima sobe e o debaixo desce". A personagem, sabendo disso, deixa óbvio que sua partida tem um causador e que a única forma de sanar suas dívidas é deixando seu sangue como pagamento, e desse modo parte para o salto mortal. O clipe mostra a cena em que pai e filho abraçados se lançam do alto de um prédio:

"Aos jornais, eu deixo meu sangue como capital
E às famílias, um sinal...
À corte eu deixo um sinal"
 
O sinal deixado é a esperança de que o fato vire notícia, nos meus jornais que lucraram com sua morte, e que a notícia sirva de alerta para a população na escolha de governantes.
 
A história mostrou que muitos brasileiros, com a notícia do confisco, infartaram e atingiram o desespero. Uma parcela desses deu fim a própria vida tamanho as incertezas e angústias.
 
O Salto segue atemporal, apesar do clipe nos direcionar para um recorte de tempo específico, a música se encaixa no atual panorama, onde várias famílias se encontram sem empregos e enfrentando a alta inflação e de brinde uma pandemia e governo corrupto, negligente, fascista e negacionista.

Na parte técnica da música, além de Falcão na voz, Xandão na guitarra, Lauro Farias no baixo e Marcelo Lobato na bateria e teclado, na composição Carlos Pombo somou ao grupo, assim como o DJ Negralha, que acompanhava O Rappa e contribuiu com os scratches, Glauco Fernandes, Daniel Nogueira, Léo Ortiz, Pedro Mibielli, Her Agapite, Flávio Gomes, Carlos Mendes, Erasmo Fernandes, Marluce Ferreira, Rogério Rosa, Rodolfo Toffolo e Veronica Gabler, todos tocando violinos, Flávia Motta, Isabela Passaroto, Jairo Diniz e Eduardo Pereira, tocando violas, e Marcelo Salles, Luiz Zamith, Lui Coimbra e Claudia Salles, tocando cellos.


Em O Silêncio Q Precede O Esporro ainda há a música "O Salto II", também chamada de "Salto Continuo", com o mesmo time de composição e participação de Glauco Fernandes com o violino solo e a voz do poeta baiano Waly Salomão que interpreta o texto:


"Incorporo a revolta
Dança do intelecto e dilaceração dionisíaca
Obsessiva ideia de fundar uma nova ordem
Frente às categorias exauridas da arte
E a indignação da rebeldia ética
A quase catatonia do quase cinema
E o júbilo epifânico do Éden
Samba, o dono do corpo
Expressão musical das etnias negras ou mestiças
No quadro da vida urbana brasileira
É, vamos inventar
Era uma vez
Olha, deixa rebater cara
Deixa tudo solto
Solta os bichos"

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