"Cisco" é uma das poesias mais fortes do rap nacional, retratando a dura realidade de um menino em situação de rua e as estratégias para sobreviver em meio as armadilhas impostas pelo sistema.
O DMN, formado em 1987, é um dos
grandes patrimônios da música brasileira, grupo por onde passaram mentes
brilhantes como Xis e Eli Efi, e segue na ativa imprimindo sua história com
Markão II, Elly, Max e o DJ Slick. Após o lançamento do disco Cada Vez Mais
Preto, em 1991, onze anos depois o grupo colocava na rua o emblemático álbum
Saída de Emergência, trabalho que trouxe "H.Aço" (lançada como single
em 1999), a releitura de "Racistas Otários", do Racionais MC's, e a
clássica "Cisco", que vamos falar hoje.
"Cisco" tem um instrumental
arrebatador, romântico e belo para tratar de assunto denso. A música tem sample
de "Love Is Where You Find It" da banda californiana The Whispers,
lançada em 1981 pelo selo Solar em álbum homônimo. Cisco é o nome da personagem
central nessa storytelling do DMN, ele vive na região central da cidade de São
Paulo onde prática furtos e roubos para se alimentar e se manter nessa miséria.
A mãe de Cisco está junto dele nas ruas, porém "Jogada na calçada, calça
rasgada, muito louca de cachaça", ou seja, uma pessoa que o garoto não
pode contar e nem ao menos a enxerga como uma figura materna.
A letra traz uma ambientação em
um período do ano onde comumente as pessoas são mais sensíveis, o Natal, e
Cisco percorre as ruas do centro vendo coisas que sua infância fodida não lhe
permite vivenciar. Vê as TVs ligadas na vitrine, passando desenhos, comerciais
de brinquedo, de vídeo game, do Mc Donald’s e o rapaz está ali à mercê das
violências, buscando uma válvula de escape em um saco de cola ou qualquer outra
droga que o amenize da dura realidade.
O DMN tem a sensibilidade de
retratar em Cisco a dor que muitos carregam, a saudade, a raiva quando se perde
alguém pelo estado: "Às vezes dá role na quadra do cemitério / Chora a
morte do seu mano, muito desgosto / Covardia do caralho tiro no coco", e é
em meio a todo esse cenário descrito que surge uma das frases mais dedo na
ferida do cancioneirismo popular: "157 no farol é só o troco, é só o
troco!".
A vida de pessoas como Cisco têm
sempre um final triste e melancólico, e a letra não foge disso, porém antes de
chegar à cadeia aos dezesseis, Cisco contrai o virua HIV e aqui o DMN toca em
um tema pouco explorado no rap nacional, mesmo atingindo muitos da periferia.
Bem verdade que o grupo não é o primeiro a falar do assunto e que outras
composições como "Contaminou", de Frank Frank, lançada em 1992 na
coletânea Rapper's & Irmãos. Cisco, no auge de sua adolescência se
relaciona com Tetéia, "Vendedora de prazeres, menina mais velha" e
"com ela teve o seu primeiro atrito / Umbigo com umbigo, sussurros e
gemidos", depois, para fazer uma moeda passa a fazer sexo por dinheiro até
rodar na mão da polícia.
"Cisco" é uma história indigesta e
que promove a reflexão, um conto de uma vida marginalizada e nos faz enxergar
os vários Ciscos que existem por aí.
Uma curiosidade sobre "Cisco" é que participam da música, como backing vocals, os irmãos Diogo Poças e Céu. Na época, Diogo era conhecido como um grande produtor e compositor, já a Céu era completamente desconhecida da grande cena. Inclusive "Cisco" foi a primeira gravação da cantora que posteriormente lançou um álbum homônimo ao seu nome em 2005 e fez um grande sucesso na Europa, principalmente na França. Na sequência passou a ser conhecida dos brasileiros e do público do rap assinando colaborações para artistas como Inquérito, Emicida e Black Alien.
Muito bem analisado. o Som é mágico.
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