Tudo começou em 1992, quando os Racionais MC’s gravaram “Voz Ativa”, música que virou sucesso imediato dentro do universo do rap. Em 1998, Marcelo D2 lança seu terceiro disco, o primeiro em carreira solo, já que antes havia lançado dois com a banda Planet Hemp. Em Eu Tiro É Onda, D2 apresentou uma mistura de Hip Hop com Samba e fez o rap carioca ser visto com outros olhos pelo público paulista, que naquele momento era bairrista e abria poucas exceções para o rap feito fora de SP, talvez a maior abertura era para a música do Distrito Federal. No ano seguinte, os paulistas ainda contemplariam a estreia de MV Bill, com Traficando Informação, com produção de Ice Blue e participação de KL Jay.
Depois de lançar o terceiro álbum com o Planet Hemp, em 2003 Marcelo D2 lança seu segundo álbum solo, A Procura da Batida Perfeita, com produção de David Corcos. E aqui que começa de fato o desentendimento entre os artistas. D2 assistiu uma apresentação do rapper estadunidense Guru, que iniciou um a música com um trecho de Public Enemy, achou genial a sacada e gostaria de repetir o feito em uma música sua. D2 teve como inspiração no início de sua carreira os Racionais MC’s e Thaide & DJ, inclusive sampleou várias vezes trechos do LP Hip Hop Cultura de Rua (álbum que marca a estreia de Thaide & DJ Hum, em 1988). Sobre Thaide, Marcelo havia feito mais do que um sample, tinha feito uma releitura de sua música, a “Eu Tive Um Sonho”, lançada no primeiro álbum, a qual dedicou ao amigo fundador do Planet Hemp, o Skunk. Para o segundo disco a homenagem seria para os Racionais MC’s, com trecho de “Voz Ativa”.
Em “Qual É” Marcelo utiliza-se de linhas de “Voz Ativa”, inicia a canção de forma similar que os Racionais, alterando algumas palavras, enquanto a original diz:
“Eu tenho algo a dizer / E explicar pra você / Mas não garanto porém / Que engraçado eu serei dessa vez / Para os manos daqui! / Para os manos de lá! / Se você se considera um negro / Um negro será mano !!!”
A música de D2 segue:
“Ih! Eu tenho algo a dizer / Explicar pra você / Mas não garanto porém / Que engraçado eu serei dessa vez / Para os parceiros daqui / Para os parceiros de lá / Se você se porta / Como um homem, um homem será”
Marcelo D2 - Qual É
O grupo paulista não gostou da homenagem, em entrevista de Marcelo D2 para a revista Rollingstone, o rapper comentou sobre a confusão:
“Pô, eu usei um pedaço de uma música deles e os caras nunca me falaram nada. De repente, vieram falando uma coisa que eu tinha que ter pago os direitos, não sei o que lá. Aí, pô, saiu uma confusão fodida. Mas, cara, pra mim isso foi uma besteira fodida, tão grande quanto a que eu fiz com o Caetano. Um tipo de briga dessas é um puta atraso de vida”.
Segundo D2, os Racionais queriam que o MC carioca paga-se direitos autorais e se exime da responsabilidade dizendo que os tramites legais foram pedidos para sua editora (que é quem cuida da questão de registros e direitos em uma gravadora): “eu procurei a editora, que é o caminho legal que eu faço sempre”. Porém Ice Blue, em live que fez para comentar sobre a treta entre Spinardi e a Recayd Mob, o MC do Racionais relembrou a treta com Marcelo.
Para Blue, o ponto central não é a questão de direitos autorais, e sim o fato de D2 ter usado o trecho da música sem ter comunicado antes os Racionais, e mais que isso ter deturpado a música, de ter “fodido a música”, em palavras do próprio Blue. O som dos Racionais fala que “a juventude negra agora tem a voz ativa” e a de Marcelo diz “qual é neguinho”, o que na concepção de Ice Blue inverte a mensagem central da música, a transformando numa sátira e não um grito de protesto. Outro ponto que estressou, foi que a música “Qual É” fez parte do comercial da Coca-Cola, justamente evidenciando esse trecho, e sobre a questão financeira o grupo paulista ficou sem receber um centavo. Na visão de Blue, D2 deveria ter creditado a música como “Marcelo D2 e Racionais MC’s”. Com isso os Racionais passaram a cobrar o Marcelo, enviaram recados através do Seu Jorge e o Catra, até que um dia, não sei se é lenda ou não, chegaram as vias de fato, com Ice Blue agredindo o D2 em um evento em que se encontraram.
Fatos que pouca gente sabe é que o Ice Blue chegou a viajar com o Planet Hemp durante a turnê nos EUA do disco A Invasão do Sagaz Homem Fumaça, no ano 2000, a ocasião em que estiveram juntos foi em um clube no Queens, como Pedro de Luna cita em seu livro Mantenha o Respeito, a biografia do Planet, de 2018. Outro fato é que quem sugeriu o trecho “qual é neguinho, qual é” foi o Bezerra da Silva, o sambista achou que a expressa era popular, tinha a ver com os morros cariocas, e que era popular e conversava com a proposta da música. Talvez esse fato nem o Ice Blue soubesse, os Racionais MC’s sempre nutriram um respeito pelo Bezerra, e acredito que sabendo da visão do artista, poderiam aliviar para o lado de Marcelo.
Não se sabe se o D2 pagou algum valor para os Racionais, assim como não sabemos se o grupo de Mano Brown paga algum valor a família de Tim Maia pelo uso do instrumental de “Ela Partiu” em “Homem Na Estrada”, mas sabemos que a poeira baixou em relação ao assunto. Em "Qual É?", D2 também se utiliza de trechos de Chico Science e Gerson King Combo, porém nunca foi cobrado por esse uso. Fazendo um paralelo entre a sua treta e a briga entre Spinardi e a Recayd Mob, Ice Blue ainda que conversaram essa fita com D2, houve desentendimento, houve a cobrança, mas depois disse houve o respeito profissional, como fazerem shows no mesmo festival e talvez a maior prova disso é que Mano Brown e Marcelo participaram de um mesmo álbum, o Guerreiro Guerreira, de Hélião e Negra Li, lançado em 2004, pouco tempo depois desse barulho.
Conclusão: Que está certo ou errado não vem ao caso, D2 poderia ter creditado ou avisado os Racionais, e os paulistas por sua vez poderiam ter entendido como uma homenagem (mesmo com o contexto explicado por Blue), afinal os Racionais são o grupo mais sampleado, citado e referenciado no rap brasileiro, e nem todo mundo consegue pedir autorização, o fato que não gostaram e sobrou para o D2. A polêmica vire e mexe é ressuscitada, pois no decorrer da década de 2010 o público de rap passou a amar as famigeradas tretas entre artistas, e tanto de sites que noticiam essa briga é impressionante, todos com matérias rasas e simplistas enquanto assuntos importantes estão na sarjeta dos mesmos, quando estão!
Aos MC’s que estão começando ou que já têm uma jornada iniciada, a lição aprendida aqui é sobre respeito, respeitar quem veio antes, dar crédito, conversar, explicar e não deturpar a música alheia. Quando Thaide & DJ Hum lançaram seu primeiro disco, Pergunte a Quem Conhece, de 1989, ligaram pra Tim Maia pedindo autorização para usarem o sample de “Você” na música “Minha Mina”, o sindico negou. Como desfecho, tiveram que recolher do mercado milhares de cópias do LP, regravaram a música, sem o sample, e só assim puderam vender o disco. Outra liça, se você é um artista veterano e te homenagearam num som, sampleando trecho de seu trabalho, entenda como uma verdadeira homenagem, tente ser mente aberta e liberar o uso, na minha opinião é uma atitude mais da hora do que reclamar direitos autorais. Vale lembrar que estamos falando de uso pequeno e pontual e não de usar o mesmo instrumental ou se apropriar da obra criativa de outrem, há um abismo entre esses dois pontos!
Boa!!
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