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Isaac de Salú convida para uma Assembleia de EU's

Jeff Ferreira
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Isaac de Salú é uma daquelas figuras únicas que a arte proporciona. O jovem de Itapevi/São Roque apresenta em Assembleia de Eu’s as várias facetas de sua poesia e os dilemas que permeiam seus pensamentos, agora musicalizados e externados em flow que alterna da voz rasgada em linhas de ataque, com suavidade de versos melódicos, além de constantemente declamar seus poemas, como numa linda peça teatral, ou mesmo uma batalha de slam.

O Isaac foi um dos amigos que o rap me proporcionou, conheci a pessoa de Salú nos bastidores do lançamento de “Água Salgada”, música que fez com Teagacê e Rodrigo Zin. De lá pra cá ficamos próximos, trocamos várias ideias além da música, filosofando sobre a existência e os percalços para se manter em pé, do hype ao desemprego e as contradições humanas. Então me torno suspeito para falar de sua obra, conhecendo essa, que é Jefferson, assim como eu, a tendência é mostrar um ponto de vista mais íntimo. Talvez esse seja o diferencial, mostrar algo que vai além do que uma diversão rápida pelo álbum. Então vamos nessa!

Primeiro vamos contextualizar o que levou Isaac de Salú a chegar em Assembleia de Eu’s. Esse é o primeiro disco oficial do rapper, mas não o seu primeiro álbum. Coisa de louco? Isaac lançou uma série de singles potentes como “Violeta”, “Flow Valdemiro” e “O Hypado Mais Flopadodo Ano”, depois pegou o lixo eletrônico de seu PC e lançou Sal Cru, um álbum com resquícios de beats e letras que poderiam ter sido deletadas do HD, mas brindou a cena com ótimas canções, minha favorita é “Linha Chilena”. Depois veio “Meditando e Orando”, música que contou com produção do Francês PurppHazeMafia, e vinha com a intenção de preparar terreno para o Assembleia. Vinha porque a inquietude de Salú fez nascer o sexto filho, uma história fictícia que narra problemas reais, aqui artes cênicas e Hip Hop geraram esse filho, uma cria do Bozo que se revolta contra seu pai, em um EP conceitual e moderno.

A estética de Assembleia de EU’s remete a divindade, a capa do disco é um Jesus negro e periférico na figura do próprio Isaac de Salú, mostrando de forma poética suas cruzes, coras de espinho, sagrado coração e ascensão, tudo isso está nas linhas do álbum, da primeira à última faixa. A introspectiva apresentada é o fio condutor para essa narrativa, como uma forma de exorcizar seus demônios e quebrar paradigmas. Por falar nisso, uma das minhas favoritas é “Velho Racista de Esquerda” uma crítica a esquerda, espectro político na qual eu, Isaac e qualquer pessoa sensata e ligada as artes, principalmente o Hip Hop, se enquadram, e aqui não falo de política partidária, somos inteiros, falamos de luta de classes, como a letra explica: “Aqui ninguém sabe o que é esquerda e direita, a gente sabe o que é desespero e se sentir invisível”. Essa música é uma das raras autocriticas a esquerda e suas contradições, diria que algo até pioneiro no rap. E não, não incluo aqui as tentativas reacionárias de ser fazer rap, não confudam desastre com arte.

Assembleia de Eu’s é um disco de vários Isaac’s, cada um com uma personalidade, cada um representando uma fase, e todos esses personagens se reúnem para debater os rumos de Salú, uns querem um caminho, outros desejam outro, e essa confusão que questiona o seu papel na sociedade e relação entre sexo, dinheiro e fama fazem o debate mais intenso. Apesar de uma obra introspectiva que fala do “Eu”, do Isaac, são ponderações plurais, questionamentos que abrangem qualquer indivíduo que padece dessa sensibilidade. Grande exemplo é a faixa “Rock Livre”, que conta com participação de Moe Drick e Alemar.

Outra faixa que merece destaque é uma que já havíamos conhecido anteriormente, “O Peixe Se Afoga Com Ar”, aqui Isaac coloca várias paranoias nos versos, parte por ser hipocondríaco, parte por ser um preto favelado: “meus irmãos não vão escorrer pelos meus dedos”, ao mesmo tempo que traz um retrato do Brasil, e a dura missão de trabalhar para pagar por terapia, ou não ter um psicólogo e viver na angustia, ou ainda não trabalhar para viver sonhos e padecer na realidade. Isaac vendeu sua bike, a que usava para abstrair da tensão cotidiana, isso para pagar suas contas, essa história real e visceral, de conto triste se transformou em poesia. Linhas agora eternizadas.

Podemos ainda falar das intervenções poéticas que acontecem entre uma faixa e outro, como as observações que Adriana Porto faz na introdução de “Sempre Em Frente Salú”, ou sobre “o eu contra si mesmo” em “Sarrando na Tristeza”, uma love song desconstruída, sobre não conseguir esquecer uma paixão. Também podemos falar de “28 D Julho”, que narra outra história real, de quando nosso poeta não tinha condução para retornar pra casa e passou a noite sozinho num motel, isso virou música em beat de Leo Machion. Ah, as produções de Assembleia de Eu’s, em boa parte contém instrumentais de Bon Beats, outros do próprio Isaac. Sobre “Eu’s e Budas Cabeludos”, com participação de Luiz Basta, Isaac se mostra um “Buda Cabeludo com corote na mão” em uma meditação sobre a divindade, religião e amor, ao mesmo tempo que convida a rever os planos e discursos.

Bruna Bá participa de “Azul”, onde o poeta fala sobre a rotina e ter que lidar com a depressão, algo que cada vez mais assola nossa juventude e população geral, em “Luz A”, a faixa que fecha o disco, da continuidade ao esse tema, porém de outra forma, agora questionando o autoconhecimento e abordando a própria fé, faixa que dialoga com “Meditando e Orando”. InversaMente eu rolei no Programa Consciência Brasileira, encerrei o programa do último 08/08 com essa reflexão de presente para os nossos ouvintes.

O propósito do álbum Assembleia de Eu’s é se reconhecer como um dos EU’s de Isaac, encontrar nossa semelhança, algo que nos aproxima e afasta as diferenças, cada qual tem suas cruzes para se carregar e com exposição pessoal musicada, Isaac de Salú cumpre um dos papeis quase em desuso no rap, que é de resgatar mentes e vidas, pode parecer pretencioso, mas só deve-lo de pé rimando já é um espelho, e como disse Adriana Porto: “Fica forte preto!”

Finalizo essa ideia com um recorte do release do álbum, onde destaco a questão da inclusão que os vídeos do YouTube promovem com a comunidade surda e muda:

A ideia de lançar uma obra completa acessível para surdos e cegos, foi inspirada por um diálogo com o rapper e produtor Wzy, que possui deficiência visual. Salú percebeu como pessoas com diferentes tipos de deficiência são excluídas do mercado e acesso às milhares de produções em plataformas do setor e o descaso da grande maioria dos artistas com um público que possui necessidades especiais. A sensibilidade artística de seu trabalho faz jus ao respeito com um público amplo, acessibilidade e inclusão são fundamentais para o acesso a música, que apenas é possível quando alguém busca expressar toda multisensorialidade disponível na cena, na língua de sinais cada faixa traduzida, marca o início de uma geração que pode inspirar muitos outros artistas em lembrar que o rap deve ser para todos. 

Confira o álbum Assembleia de EU's:

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