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MEU Ceará | Uma Love Song Braba de RAPdura

Jeff Ferreira
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RAPdura nos apresenta em  "Meu Ceará" uma love song, carta de amor ao estado e seus icones, um hino que nos deixa arriado pela terra natal do poeta, ao mesmo tempo que o cabra vem acido e sátiro, carregado de criticas sociais e a compatriotas que não honram as sandálias que vestem. A produção é assinada por Nixon, tem scratchs e colagens pelo DJ Basim e conta com lyric video por Junior Imigrante e Ivonverine.

"Meu Ceará" inicia-se com trecho do clássico "Suplica Cearense", originalmente de 1960 composta pelo baiano Waldeck Artur de Macedo, também conhecido como "Gordurinha" e mundialmente conhecida na voz de Luiz Gonzaga, um dos maiores expoentes da música nordestina. "Suplica Cearense" foi criada com o intuito de sensibilizar e arrecadar fundos para aqueles que sofrem com a seca na região.

"Oh, Deus!, perdoe este pobre coitado
Que de joelhos rezou um bocado
Pedindo pra chuva cair sem parar
Desculpe eu pedir a toda hora pra chegar o inverno
Desculpe eu pedir para acabar com o inferno
Que sempre queimou o meu Ceará"

No começo do primeiro verso, RAPdura faz conexão entre o desolado sertão com world music, associando o repente nordestino com o freestyle do Hip Hop, como referência cita a música "Na Sombra do Juazeiro", de Elino Julião, ao filme 8Mile, estrelado pelo rapper Eminem, abordando o universo das batalhas de rimas, além de RAPdura brincar com as letras MC, de "Meu Ceará", no hip hop são acrônimo para "mestre de cerimônias", e um MC citado é MCharles, rapper do Cariri, região cearense onde está a cidade de Juazeiro do Norte. O cangaço e a figura de Padre Cicero também estão na poesia, são elementos importantes da cultura do nordeste, os mais conhecidos, são relacionados no contexto do duelo de rimas, como se o freestyle nordestino fosse uma forma de cangaço e o santo cearense o protetor dos que batalham.

 MCharles vencedor Nacional do Duelo de MC's

"Sou mandacaru, enfrento a seca, sou pior que esses males
Sombra de Juazeiro assombra eles nesse 8 Mile
Mister M no mic, mente mágica em freestyle
Muda a modalidade, M.C miserávi, M.Charles (Owww)
Rimo difícil e faço parecer fácil
Sai do edifício e pede Ciço pra sair vivo do nosso cangaço
O que 'cês querem ver? (Sangue!)
Sangue preto não estanca em terra branca, igual lama de mangue"


RAPdura faz uma critica ao fajuto rap gangster e sua estética cheia de muganga, ou seja, fantasiosa, onde peseudo rappers querem alimentar uma visão de glamour ao crime, enquanto reforça ser cria da Sapiranga, um dos bairros mais perigosos de Fortaleza. Há referência a fanpage Suricate Seboso, que ganhou fama por compartilhar nas redes sociais expressões cearenses em memes, e aqui o MC compara tais rappers com tais memes, a expressão "manga" vem de debochar, em alusão a falta de compromisso dos MC's de apartamento que ainda acham engraçado o desserviço que prestam. O artista também referencia sua própria obra em "Norte Nordeste Me Veste", música que faz ode a cultura nordestina e que ganhou destaque ao ser interpretada ao vivo junto a banda O Rappa. Ainda na critica aos artistas que não contribuem, RAPdura os trata como "cocô pro Cocó", em referencia a uma area verde na capital cearense, com edifícios residenciais construidos em cima de um espaço de preservação ambiental, onde provavelmente reside a maioria desses MC's.

Paga de gangstar de corrente, chei' de muganga
Sabe de nada, inocente! Sou cria da Sapiranga
Suricate Seboso vomita letra e ainda manga
Nordeste Veste num é camiseta? Arregassem as mangas
Só fala água e merda, é muito cocô pro Cocó


Depois temos uma critica ao cantor Fagner, um dos artistas cearenses de maior sucesso, mas que infelizmente se curvou ao modelo de gestão do Brasil atual, dedicando sua obra ao ministro Sergio Moro, em alusão de que sua fala, abraçando os ideais conservadores, perdeu uma grande parte de sua fã base: "
morreu no próprio gogó" ao passo que exalta a lenda Belchior, artista de Sobral, e um dos maiores expoentes cearenses. Outros nomes também são citados a fim de exalta-los como Amelinha e Ednardo, e o movimento cultural do Pessoal do Ceará, com artistas do calibre de Belchior e Rodger Rogério. Ainda cabe menção a banda de rock Cidadão Instigada, criada em 1996 em Fortaleza e liderada pelo vocalista Fernando Catatau.

"Quem dera ser um peixe" morreu no próprio gogó
Tão nessa de ser melhor? Então tomem o meu pior
Eu sumi e voltei maior, pra ser eterno igual Belchior
Amelinha e Ednardo é o pessoal do Ceará
Sou Cidadão Instigado, e jamais pago pelo jabá

 

Eterno Belchior
Não poderia ficar de fora o Dragão do Mar, centro cultural localizado em Fortaleza, complexo que abriga restaurantes, teatro, cinema, biblioteca e o planetário. O nome é uma homenagem a Francisco José do Nascimento, cearense de Canoa Quebrada, jangadeiro e líder abolicionista, lutando pela libertação de negros escravizados, aliás o estado do Ceará foi o primeiro do Brasil a abolir a escravidão. Fortaleza é um das capitais em que o metrô tardou a chegar e a funcionar em sua plenitude, então o meio de transporte por ônibus ainda é a maior porcentagem, linhas como a do Grande Circular são lotadas assim como terminal rodoviário do Papicu, inaugurado em 1993, por onde passam cerca de 300 mil, sendo o mais movimentado da cidade.

"Cuspo fogo na terra e no ar, como um Dragão do Mar
Cada linha é extensa e lotada, mah, como o Grande Circular
Sua carreira é uma droga e é terminal igual ao Papicu"

                                Estatua do Dragão do Mar, no Centro Cultural de mesmo nome

Seguindo com a critica aos rappers de mentira, RAPdura faz um desafio para que esses conheçam o Pirambu, uma comunidade carente da cidade, 7º maior aglomerado do Brasil, onde 19% da população não tem o saneamento básico, se os tolos (papangu) conhecessem essa realidade, suas mascaras de gangster cairiam. E finalizando o primeiro verso, a menção a Jangurussu, outra região perigosa de Fortaleza, onde seus moradores apesar da péssima infra estrutura e da situação cotidiana de violência seguem resistindo e minimamente tocando suas vidas. 

"Só fala em arma e vajota; legal, mas só tem papo e cu
Caia no Pirambu, cai tua máscara papangu
Em meio ao lixo musical, resisto igual Jangurussu"


No verso 2, RAPdura enfim se defende dos ataques que sempre sofreu por rappers de seu estado, que o criticaram por se apresentar com elementos regionais, como sandália de couro e chapéu de palha. Aqui a brincadeira com o trap, subgênero do rap, em que muitos da nova escola optaram por seguir, e são associados ao cearense Didi Mocó e seu filme Os Trapalhões e o Mágico de Oróz, em que a trupe sai do sertão em busca de melhores condições no sudeste, e a expressão "tiro de letra", que pode ser interpretada como rimas, voltando novamente as batalhas de freestyle, e ao vocabulário, então a menção a escritora fortalezense Raquel de Queiroz, vencedora do Prêmio de Camões em 1993. Depois a citação ao humorista, e também cearense, Chico Anysio, mestre da improvisação no humor, no rap, as batalhas de rima também são chamadas de batalha de improviso.


"O boneco exótico de sotaque robótico
É tão foda que a cópia nem chega aos pés do protótipo
Imitar gringo num é ótimo? Estereótipo inóspito
Desconhecer teu estado é um atestado de óbito
Chapéu de palha? É lógico! Mágico de Orós
Trapper trapalhão tiro de letra, igual Rachel de Queiroz
Tão Chico quanto Anísio, improviso o riso no algoz"

 
                                Escritora Raquel de Queiroz

RAPdura faz menção a sua técnica de cantar e que o consagrou, o chamado speedflow, em que a levada é acelerada, e faz comparação com os ônibus de Fortaleza que são devagar, pois funcionam com biodiesel, já que o Ceará é um dos maiores estados produtores do combustível, e brinca com as palavras "pata ativa", em alusão ao poeta Patativa do Assaré, ao mesmo tempo que "pata ativa" remete  velocidade, e comprova isso em "sextilha veloz", na poesia, uma sextilha é uma estrofe de seis versos. RAPdura rima seis versos no mesmo espaço de tempo que comumente se rimam quatro versos, quebrando a métrica lógica do rap convencional. E a seguir menção ao Castelão, maior estádio de futebol de Fortaleza, e aos seus times locais, o Ceará, conhecido como vovô, e o Fortaleza, conhecido como leão.




                                Castelão lotado em clássico Ceará X Fortaleza

"Num tem biodiesel, a pata ativa a sextilha veloz
Rap novo virou o jogo, eu sou clássico em Castelão
Tão sábio quanto o Vovô, voraz igual o Leão"


Outro rimador do Ceará a ser citado é o MC JB6, de Juazeiro do Norte, campeão de eventos como a Batalha do Cangaço, e aqui a alusão a Lampião, além de lembrar que o jovem do sertão, um peão, fez grandes nomes do freestyle, reis da modalidade, se encantarem com suas rimas.

"Se rima é campeonato, JB6 é o campeão
Eterno Lampião, e o rei de vocês se curva ao peão"


O artista faz referencia a simplicidade de sua obra, afirmando que a mesma é MOBRAL, sistema de alfabetização criado na ditadura militar, aqui RAPdura quer dizer que sua estética e sua regionalismo fazem até os não letrados se identificarem com sua mensagem, sem necessidade de modernidades como "tablet e wi-fi". Um importante fato histórico é lembrado por Xique Chico, quando o físico Albert Einstein provou ao mundo sua teoria da relatividade ao realizar um experimento na cidade de Sobral, no Ceará, durante um eclipse solar. Outro fato acadêmico referenciado é o do professor Ciswal Santos, de Juazeiro do Norte, ex-catador de latas que foi aprovado na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, em 2018. Rapadura segue citando os jovens talentos de seu estado, e aqui referencia o MC de batalhas cearense Flowtal e a organização dos trabalhos como no filme Bacural, de Kleber Mendonça Filho (2019), em que mostra o sertão nordestino se organizando para resistir a investida maquiavélica de políticos e gringos.

"Sem tablet e wi-fi, minha obra é MOBRAL
Até Albert Einstein estudou minha sobra em Sobral
Um gênio como Ciswal, me enfrente se for o tal
Rap, repente, Flowtal, trampo igual Bacurau
Aí dento! Aqui é Fortal!"


Professor Ciswal Santos

Seguindo tem uma critica aqueles que se acham cabra da peste "
Não se ache macho só porque foi no CTN", o Centro de Tradições Nordestinas, mas que têm medo de duelar em competições de rimas como da Batalha da TN, que acontece no bairro Terrenos Novos, organizada pelo MC Barnabé é ativista do Movimento Social Fome. RAPdura faz ode a bravura da mulher nordestina, lembra da fortalezense Maria da Penha Maia Fernandes, que deu nome a lei Nº 11.340 que coibi e puni a violência contra as mulheres, em contra ponto cita Viviane Sucuri Pereira, cearense de Tauá, na região do sertão dos Inhamuns, atleta de MMA especialista nas modalidades boxe, wrestling e jiu-jítsu e participante de campeonatos como o Invicta Fighting Championship e o Ultimate Fighting Championship, o UFC.

"Não se ache macho só porque foi no CTN
Firma o espinhaço diacho pra ser MC na TN
Tua punch vai te punir, poesia é Maria da Penha
Viviane Sucuri na arena, é Lei Maria da Lenha"

                                                    Viviane Sucuri

Citando novamente o filme Bacurau, RAPdura adentra na personagem Lunga, líder da resistência e espécie de guerrilheiro, interpretado pelo cearense Silverio Pereira, nascido na cidade de Mombaça, e uma sutil critica ao humorista Tom Cavalcante e seu desastroso posicionamento político. Nas linhas seguintes o poeta fala de poesia, primeiro convocando Geraldo Azevedo, Alceu Valença, Elba Ramalho e Zé Ramalho, referenciando o álbum O Grande Encontro, protagonizado por esses artistas nordestinos, e findo sua poesia como relevante no estado, em alusão ao livro de Bráulio Bessa, Poesia Com Rapadura (Editora CENE, 2017).

"Sou Lunga pra ignorante, já não tenho dom para tanta conversa
Não canta, resmunga, tá fora do Tom Cavalcante
E ainda acha que é bom à beça
Pense num Grande Encontro se junta uma ruma de cabeça dessa
Tu quer poesia, é com RAPadura
Duvida? Pergunta para o Bráulio Bessa"

Depois uma critica a classe política, lembrando de um episódio em que a vida imita a arte e passagem inusitada do cearense de Itapipoca, o humorista Tiririca, pela câmara dos deputados, se aliando a interesses contra o povo e seu filho Tirulipa segue os mesmos passos entrando em diversas polêmicas. No contraponto, a citação a Coxinha e Doquinha, personagens do humorístico Nas Garras da Patrulha, exibido pelo canal cearense TV Diário, existente desde 1980 quando era um programa de rádio da estação Verdes Mares,o atrativo tem esquetes inspiradas no cotidiano do povo cearense, e aqui a alusão ao termo "coxinha" que dá nome a um dos personagens e também é como a esquerda brasileira se refere a oposição, e faz critica a esses que defendem e apoiam a manutenção dos poderosos no poder.

"Tu quer faz me rir? Eu ganho a vida, sou rico sorrindo tipo Tirullipa
Já que deputado é safado, por que que o palhaço é o Tiririca?
Doquinha contra os coxinhas que servem carniças e oligarquias
Mando um caminhão de madeira maciça para as autarquias e as monarquias"

Coxinha e Doquinha, personagens do humoristico Nas Garras da Patrulha, da TV Diário

No último verso, uma estrofe de dez linhas, o rapper cita o grupo de rap com inspirações no soul, o Nordest Side, da cidade de Itapipoca, e faz uma viagem pelas cidades cearenses, sejam elas na região de Fortaleza ao mais afastadas como na micorregião de Ibiapaba no noroeste do estado. E também cita outros bairros de Fortaleza, favelas sem infra estrutura mas que resistente, tanto artisticamente como para se manterem vivos, é o caso, por exemplo, do Conjunto Palmeiras e Bom Jardim. O rapper finaliza dando uma cutucada nos terraplanistas, lembrando as voltas que o mundo deu para que hoje ele pudesse cantar: "
A minha terra num é plana, é plena"

"Itapipoca em verso e prosa, Nordest Side faz jus
De Crato a Crateus, de Pacajus a Viçosa
Outrora em Timbaúba, em Tianguá, Ubajara
Pra granja de pau de arara, na estrada de Carnaúba
De Manibura eu vim, em Lagoa Seca eu sou residente
Conjunto Palmeiras e Novo Oriente, Maracanaú e Acaracuzim, Mondubim
Paracuru, Bom Jardim
A minha terra num é plana, é plena
E qualquer letra vai ficar pequena
Pois o meu amor por ti não vai ter fim"


O refrão não carrega tantas referências, a não ser do rapper Rashid afirmando que "
Um dos melhor speed flow que 'cê ouviu vem do Ceará", mas as linhas sintetizam bem essa canção de amor de RAPdura a sua terra natal, o nordeste vive e canta, é livre, e não precisa de aval de ninguém, como nunca precisou, e desse modo o artista segue fazendo sua arte:
 
"Rap no mic, põe a mão pro ar (O meu Ceará)
O verso é livre como carcará (O meu Ceará)
Nordeste rima sem seu alvará (O meu Ceará)
O agreste vive e ninguém vai parar (O meu Ceará)
Rap no mic, põe a mão pro ar (O meu Ceará)
O verso é livre como carcará (O meu Ceará)
Nordeste rima sem seu alvará (O meu Ceará)
(Um dos melhor speed flow que 'cê ouviu vem do Ceará)"

Finalizando, coube espaço para colagem com sample de Patativa do Assaré, poeta nascido na cidade que carrega no nome, Antônio Gonçalves da Silva, também foi compositor, cantor e um grande improvisador, sempre carregando suas raízes em sua obra:

"Eu sou brasileiro, fio do Nordeste
Sou cabra da peste, sou do Ceará"
Patativa do Assaré

Confira RAPdura em "Meu Ceará":

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