Banner do seu site

OGI E AS CRÔNICAS DA CIDADE CINZA

Jeff Ferreira
By -
0

Lançado em 2011 o álbum Crônicas da Cidade Cinza é uma das grande obras do rap nacional. Um verdadeiro clássico da nossa música com originalidade e inspirado em uma velha conhecida: a Cidade de São Paulo. O titulo foi sugerido pelo Mascote, parceiro de Rodrigo Ogi no extinto grupo Contrafluxo e a capa é um graffiti d'Os Gemeos, pioneiros do Hip Hop no Brasil.

O disco abre com "Cidade Com Nome de Santo", uma produção de Stereodubs, e rápida introdução sobre a cidade cinza, a que tem nome de santo. Ogi discorre sobre São Paulo, e ao mesmo tempo faz criticas sociais a capital homenageia seu povo, suas histórias e é um cartão de visita para o disco, com a ginga do samba paulistano e a essência do rap, Ogi versa:
"E nessa cidade com nome de santo
Foi onde eu nasci e aprendi a sambar
Eu já conheço bem seu jeito
Eu conheço como a palma da mão
Eu sei bem que ela tem defeitos
Mas trago ela no meu coração"

A faixa dois é "Profissão Perigo" produzida pelo próprio Ogi e vem para homenagear os "cachorros loucos", os motoboys, responsáveis por estreitar distâncias entre produtos e clientes e que têm uma rotina desafiadoras, constantemente vivendo situações de risco em meio ao transito da capital, e são um simbolo de trabalho e resistência nessa cidade cinza: 

"Peço passagem por dentro, atento às ruas do centro
O escapamento no túnel faz eco
A malandragem aplico, retrovisores cutuco
Com a buzina eu abro espaço no horário de pico
Conheço todos os trajetos dessa capital
Correr já é parte do meu ritual"

Na sequência a música "Por Quê, Meu Deus?", outro beat de Ogi, a personagem a ser homenageada é o policial, um tipico trabalhador paulistano que quase sempre é morador da periferia e a serviço do estado combate seus vizinhos e sua classe social, mas atrás desse ponto tem uma família para amar e sustentar:

"Tô preparado pra mais um turno
Eu checo o período, hoje é o diurno
Pego a marmita, beijo a mulher
Beijo minha filha, sigo pro ponto a pé
Beijo o terço, rezo pra nossa senhora
Chego no trampo após 3 horas
Visto a farda, lustro o coturno
Tem ocorrência, bora
Sigo a chamada no meu camburão
Vou atrás de ladrão, pois sou da contenção"

A próxima faixa é "Pronto Pra Guerra", a crônica é em cima do instrumental de Dario Beats, essa é a primeira parte da epopeia do herói Ogi, que enfrenta a gang dos Navalhas, liderada pelo traiçoeiro Zé Medalha. Rodrigo narra as habilidades de um lutador, no melhor estilo Street Fighter ou Streets of Rage, enfrentando sozinho seis ou sete capangas:

"Na mente eu tenho o plano traçado e não vou correr
Perigo, pois conheço a turma dos navalhas
Eles usam armas brancas, mas a luta é falha
Sei que o chefe dessa gangue é o Zé Medalha
Ele é bom, mas vive cheio de parafernália
Bato em uma calha e um cano cai
Sei que tudo vai dar certo em nome do Pai
Cinto enrolado na mão
To preparado pra entrar em ação"

A segunda parte da saga do Capitão Rodrigo é narrada em "Zé Medalha", aqui nosso protagonista enfrenta, mano a mano, o chefe da gang dos navalhas em uma batalha épica, cansado e ferido após lutar e eliminar os capangas, estaria Ogi pário para mais esse desafio? Confira:

"Ele pulou feito rã quando encarnei o Jiraya
Neste ringue, os meus punhos são estilingues
Acabei com o seu suingue você vai se curvar pode me chamar de King
Mocorongo, mequetrefe que diz ser o chefe, mas é um camundongo
Sente a minha botina, com peso na face cretina e leva um tombo
Perdeu a corrente, o dente da frente, no chão fica atordoado
Zé Medalha, canalha, acabei com os Navalhas e esse é o fim do reinado"

Na faixa seis, "Besta Fera", com produção de Nave Beats e participações de Mascote, Don Cesão e DJ Caique, Ogi traz um tom mais sombrio para o álbum, entrando nas crendices populares e abordando o sobrenatural na noite paulistana, mas mais que isso falando sobre o medo:

"Me despedi da jogatina e debandei do local
Bebi todas no dia, não comprei Sonrisal
Foi me dando azia, a carteira vazia
Calafrios eu sentia, subindo a espinha dorsal
Dei partida no carro, acendi um cigarro
Eu cuspi um catarro, pus a primeira e saí
Ao dobrar a esquina, acabou a gasolina
Já são três da matina, deixei o carro e segui"

DJ Zala fez a produção de "A Vaga", com refrão inspirado em Racionais MC's e trocadilha da palavra "vaga", usada na música "Diário De Um Detento" para se referir a cadeia, OGI traz o termo "a vaga tá lá esperando você" como voz da sua consciência que o adverte para não cometer nenhum ato ilegal, se afastando de problemas afim de não preencher essa vaga, enquanto insistentemente busca por uma vaga de emprego:

"Saí à captura num ônibus lotado
Às 5 da matina, num dia acinzentado
Eu tava precisando de uma remuneração
Sonhava em superar os meus dias de cão
Numa bolsa aberta eu vejo um pote de Danone
E um CD do Ramones, também um iPhone
Quando a minazinha moscou, mão coçou
Consciência me alertou com trombones"

DJ Caique assina a produção de "Corrida dos Ratos", canção que faz critica ao capitalismo, o sonho americano, a relação dinheiro X trabalho, e o enriquecimento dos patrões através da "mais valia" e a depressão dos trabalhadores que vêem-se em situações degradantes, juntos a suas famílias, mesmo dando suas vidas ao trabalho:

"O meu pai me ensinou muito bem
Aprendi, estudei, trabalhei, eu progredi
Uma grana guardei, minha casa
Comprei, arrumei uma esposa e segui
O meu filho nasceu, trabalhei
Muito mais, minha esposa também foi trabalhar
Quero mais dinheiro pra viver
Pois tenho muitas contas pra pagar
Quanto mais eu ganho, mais eu gasto"

Na faixa de número nove Rodrigo Ogi tem uma "Premonição", onde é chamado para um rolê na noite, mas sentindo que algo ruim poderia acontecer, a protagonista faz sua consulta interior e opta por não sair, essa é primeira parte de um arco, que tem que tem desfecho na música seguinte, em "Noite Fria":

"Aquele dia eu decidi não colar, nem colei, meditei
Fiquei mocado até a poeira baixar
Resguardei, no meu canto, firmão, vai na fé
Meu irmão, me perguntaram se eu iria parar
Disse não, eu jamais vou mentir, quero mais
Muito mais, mas bem hoje rapaz tô em paz por aqui
Aventuras vivi, de viaturas corri
Um irmão com duas na cintura sorri
Mas você tem que colar, tru, estrumbo lá na sul
Vai perder, num vai poder"

Na música dez, "Noite Fria", outra contribuição do DJ Caique, que assina a produção, Ogi faz uma homenagem aos pixadores, lembrando seus tempos de corre no pixo e relação com a policial que nem sempre é "apenas" o abuso de autoridade, mas como nesse caso, é acompanhada de ações justiceiras por parte daqueles que deviam servir e proteger, mas a mando do estado fazer uma faxina étnica: 

"Eu corri para alcançar o último busão pro centro da cidade
Noite fria, arsenal trazia na bagagem
Walkman, ouvindo Sabotage
A rua tá tranquila, isso deve ser miragem
Desci na Miller, com a Maria Marcolina
Senti o odor da creolina e a chuva fina cai do céu
Fui pelo Brás até a Luz, depois pro terminal Princesa Isabel
No pique pro arrebento, trombei meus manos
Na madrugada, eu tava atento e tinha planos, ha-ha!
Decidimos cair pra zona norte (e aí?)
Adrenalina era o nosso esporte"

Dario Beats retorna no instrumental de "Eu Tive Um Sonho", faixa que Rodrigo faz uma crônica lembrando-se dos retirantes nordestinos que vieram para o sudeste para construir as capitais, o gigante cinza de São Paulo foi erguido por personagens como esse que o rapper se solidariza:

"Eu tive um sonho, uma terra distante
Com paredes que eu construía
No meu sonho era assim que eu via
Eu tive um sonho, uma terra distante
Era a hora de lutar, meu trabalho
Começar, não podia mais parar"

Espião e Munhoz se juntam a Ogi para falarem do "Monstro Gigante", mais uma crônica sobre a cidade cinza, com base feita pelo Menor. A música sintetiza o álbum e fala sobre as paisagens urbanas de Sampa, seu crescimento, rotinas e habitantes e como o paulistano, todos os dias, enfrenta esse monstro:

"Ahhhh, do meu tempo de menino, muito já mudou
Uma selva de cimento desabrochou
Poderoso colossal de concreto e de metal
Olho pro céu e vejo monstros
A saliva cai da sua enorme boca
E transborda quando o esgoto desemboca
Minha paciência, infelizmente, já é pouca
E essa fumaça me sufoca
Do Sacomã ao Butantã
Bem no meio da fúria do titã
É que o monstro te agarra, mastiga e catarra
Imprime a rotina de tan-tan"

Na crendice popular treze é o número do azar, e também da faixa "Sókizila", música que fala de uma maré de má sorte, e nesse som participam Henrick Fuentes e Savave no instrumental do DJ Caique, a música também fala sobre se benzer, pedir a benção e mostrar o quão comum e benéfica são as religiões de matriz africana, quebrando um tabu (de 2010, época de lançamento do álbum) e trazendo um outro ponto de vista sobre o assunto, detonando seus conceitos pejorativos:

"Uma maré de má sorte, não vivia tranqüilo
Essa cruz que eu carregava tinha mil quilos
O menino prodígio hoje não tinha prestígio
E as minhas lágrimas formavam mais de um Rio Nilo
Um parceiro leal, pode flagrar a real
Me disse ter a solução pro meu estado infernal
Eu aceitei sim, nem relutei, fim
Não era bicho pra ficar comendo capim"

Na sequência Ogi pode afirmar: "Minha Sorte Mudou", trazendo situações oposta a faixa anterior, em cima de um beat do Sala 70, ao passo que o azar vai embora, situações de perigo aparecem e parece complicar a vida da personagem, que protegida pela sua sorte consegue se esquivar das arapucas da metrópoles. 

"Coloquei o pé na rua e senti que algo mudou
Nesse instante eu vi que a sorte pra mim retornou
Quando olho pro chão, dou um passo pra trás
Acho dezesseis notas de cinquenta reais
Fiquei muito feliz e fui tomar um Domecq
Mas eu não me contive e pedi outro conhaque
Eu fiquei de pileque com um jeito moleque
Só brisando no som daquela banda Karnak"

Ogi faz parceria com Lurdez da Luz em uma crônica que nos mostra que "Os Tempos Mudam". No primeiro verso Rodrigo faz o papel do esposo "dona de casa", ocupado com os afazeres domésticos e esperando a companheira voltar do trabalho. Lurdez da Luz, no segundo verso, é a esposa que trabalha fora, ocupa um grande cargo e mau tem tempo na correria cotidiana, numa clara sátira e ao mesmo tempo critica aos costumes conservadores e exaltando o empoderamento feminino, com o brilhante refrão cantado por ambos:

"Os tempos mudam, meu bem
Não é como antigamente, eu sei
Que o mundo a sua volta, também
Vai mudar, vai mudar"

Ogi e Rodrigo Brandão saem de peão em "Tamo Aí No Rolê", com base do Dário Beats, num jogo de versos ao melhor estilo freestyle, os dois "rodrigos" com experiência de versar juntos desde os tempos do Contrafluxo fazem um rolê musical junto para relaxar, como relata o anfitrião nos primeiros versos

"Antes Daqui eu tava ali tomando a cerva no bar
Bebi uma dose com os tiozinho pra poder calibrar
Eu tô afim de um rolêzinho, no caminho sem uruca
Preciso relaxar pra não ficar lelé da cuca"

"Eu Me Perdi Na Madrugada", com base tensa de Drunk, Ogi roleta uma noite em Sampa, numa boate freak que joga o personagem para diversas situações. Nesse som, Rodrigo, tem que rebolar para chegar ao raiar do sol inteiro, e para isso conta com toda malandragem paulista: 

"Aquela festa tava tipo Mad Max
Rolando Fu-schnikens, dois talões de cheque
Uns mano meio freak, minas de pileque
Segurança só pra variar deu chilique
Confiscou o beck dos moleque, esgarçou a gola da camisa
O bico agiu de forma imprecisa
Bateu com o cotovelo no meu drinque
E conseguiu levar pra longe a minha brisa"

"180 Por Hora" é tem um beat hardcore, produzido por Sala 70, em que Ogi narra uma fuga intensa que termina em acidente, essa é a primeira parte de uma história de um personagem que passa para outra vida, e se concluí na faixa seguinte:

"Sempre fui fã de Airton Senna e de Nelson Piquet
Pisei mais fundo sem temer
Quando cruzei a Cardeal com a Henrique Schauman
O vento vindo da janela alivia alma
Adrenalina sobe e os meus dentes rangem
Eu capotei após bater numa Pick Up Ranger"

Na música "Segunda Chace", em cima da base do Nave Beats, Ogi encerra a história que começou na música anterior e também encerra o disco, após o acidente a personagem se encontra em outro plano observando o desenrolar de sua história na terra com os pêsames de todas aqueles que ele deixou: 

"Eu ouço a voz de pessoas desconhecidas

Rezam ao meu redor, vozes tão comovidas
Clamam ao deus maior, vozes soam sofridas

Soam sofridas vozes, afim de alcançar redenção
Percebi que essa oração é por mim
Eu sinto o cheiro da dor, esse é o início do fim
Mas eu sinto o fervor com que rezam e assim"

Se listamos os melhores discos do rap nacional ou os mais importantes, ou os que mais influenciaram, Crônicas da Cidade Cinza deve obrigatoriamente estar em todas elas, pois apresenta uma construção épica e original e que mudou o conceito de rap no Brasil. Após o auge dos anos 90/00, parecia que a segunda metade de década de 2000 seria próspera para o rap, mas ao contrario, nesse período a cena estagnou-se, mesmo após ter se aberta para a TV e grandes mídias, quando Emicida lança Para Quem Já Mordeu Um Cachorro Por Comida... (leia sobre aqui) o rap voltou a respirar e o novo conceito passou a ser o chamado "underground", deixando de lado as letras gangstas e com crônicas policiais retratando as periferias, apesar do álbum do Emicida carregar um pouco disso. Mas foi com Rodrigo Ogi que o conceito se estabeleceu mostrando uma variação de flow e de técnicas de rimas, além de escrita apurada e sem abandonar a caneta afiada para Crônicas.

Em resumo, Crônicas da Cidade Cinza é um manual de como fazer um bom disco de rap, apesar dos beats de jazz, samba e até mesmo hardcore, é um álbum de Hip Hop e traz isso na sua essência, apesar do tema ser a cidade de Sampa, o disco tem várias tramas que giram em torno do assunto, apresentando diversas personagens que são tão diferentes como a levada de Ogi e a maestria para a condução de um trabalho ímpar:

Leia mais sobre Ogi no Oganpazam clicando aqui.
Confira o review do álbum Pé No Chão, do Submundo do Som, clicando aqui.

Confira o Crônicas da Cidade Cinza no Spotify:

Postar um comentário

0Comentários

Postar um comentário (0)