Em 1976, Antônio Carlos Belchior concebia o sucessor de seu álbum homônimo de 74, com produção de Marco Mazzola e gravado no estúdio de 16 canais da Phonogram, no Rio de Janeiro, o poeta de Sobral lançava Alucinação. Considerado pelas mídias especializadas como o melhor trabalho da MPB, o disco foi campeão de vendas a mescla do rock, blues, country ritmos da world music com a regionalidade do baião, somados as narrativas introspectivas e ao mesmo tempo plurais, contribuíram para o sucesso do álbum e fizem de Belchior um artista da massa.
Alucinação abre com a música "Apenas Um Rapaz Latino Americano", com letra autobiográfica que narra a trajetória e status quo do artista. Composta no período militar e com a verve inquieta do artista, sua poesia não poderia ser diferente e buscou bradar sobre a época, musicando a repressão e trazendo um cinza que se distância do colorido da Tropicália:
"Eu sou apenas um rapaz
Latino-Americano
Sem dinheiro no banco
Sem parentes importantes
E vindo do interior
Mas trago de cabeça
Uma canção do rádio
Em que um antigo
Compositor baiano
Me dizia
Tudo é divino
Tudo é maravilhoso"
A segunda faixa, "Velha Roupa Colorida", aborda o olhar para o futuro, uma mudança simbolizada pelas vestes, o colorido de Woodstock é deixado de lado, assim como a filosofia, onde muitas ideias se tornaram ultrapassadas e como cita o poeta: e precisamos todos rejuvenescer.
" Você não sente nem vê
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer
E o que há algum tempo era jovem e novo, hoje é antigo
E precisamos todos rejuvenescer"
Belchior segue uma linha de raciocínio em Alucinação, se na primeira faixa aborda seu presente e na segunda questiona suas referências, em "Como Os Nossos Pais", letra que rejeita a necessidade de falar da arte, do abstrato, para afirmar a vida real, que é sublinhada como algo mais urgente e importante e em meio as dificuldades que o cotiano traz. Belchior não vai desistir e regressar, vai encarar o dia-a-dia. A letra ainda traz como plano de fundo a ditadura militar, com critica implícita á repressão, o clima de medo e violência e o perigo na esquina.
"Por isso cuidado, meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal
Está fechado pra nós
Que somos jovens
Para abraçar seu irmão
E beijar sua menina na rua
É que se fez o seu braço
O seu lábio e a sua voz"
Na quarta canção, "Sujeito de Sorte", a música traz o clima de superação e imortalizada pelos emblemáticos versos "Ano passado eu morri, esse ano eu não morro", sampleados em 2019 pelo rapper Emicida, na música "AmarElo". A música segue como uma declaração de vida e a reflexão até esse ponto do álbum tornam o artista pensativo quanto a sua posição, e que a arte é salvadora e faz esse resgate:
"Presentemente eu posso me considerar um sujeito de sorte
Porque apesar de muito moço me sinto são e salvo e forte
E tenho comigo pensado, Deus é brasileiro e anda do meu lado
E assim já não posso sofrer no ano passado
Tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro
Ano passado eu morri mas esse ano eu não morro"
A fixa que fecha o lado A do disco é "Como o Diabo Gosta", em música rápida e de efeito duradora, anarquista e subversiva, o encontro do sertão com Liverpool. Belchior faz um desabafo sobre tudo que viveu no disco até esse ponto, e segue como uma bussola buscando o norte, sem se prender a acomodações passadas. O canto animador e a performance do artista, com levadas diferentes trazem uma caracterização ímpar para a obra.
"Não quero regra nem nada
Tudo tá como o diabo gosta, tá
Já tenho este peso, que me fere as costas
E não vou, eu mesmo, atar minha mão"
Abrindo o lado B do disco temos a faixa homônima, "Alucinação", música atemporal numa critica sobre as especulações sobre a vida, e a falta do olhar para a humanidade, quebrando o pesamento mistico de que a vida é bela, alertando para as mazelas das grandes capital, mas apesar de viver tempos sombrios, como na época da ditadura, é possível amar e não perder a humanidade em um lirismo genial e interpretação que ressalta a poesia que é menos subjetiva, colocando o dedo na ferida em assuntos como desigualdade social, racismo, violência urbana, abuso de autoridade policial e prostituição enquanto possui traços pela luta feminista, direitos humanos e homoafetivos, elementos que compõe o mundo globalizado já em 1976, já que amar e mudar as coisas interessam mais:
"Um preto, um pobre
Uma estudante
Uma mulher sozinha
Blue jeans e motocicletas
Pessoas cinzas normais
Garotas dentro da noite
Revólver, cheira cachorro
Os humilhados do parque
Com os seus jornais
Carneiros, mesa, trabalho
Meu corpo que cai do oitavo andar
E a solidão das pessoas
Dessas capitais
A violência da noite
O movimento do tráfego
Um rapaz delicado e alegre
Que canta e requebra
É demais!"
Completando a música anterior, "Não Leve Flores", de uma apresentação mais serena e arranjos que soam ao country, a faixa reforça a questão do amor, e as relações de amizades que são frágeis e o alerta para o renascimento de antigos males.
"Tudo poderia ter mudado, sim
Pelo trabalho que fizemos, tu e eu
Mas o dinheiro é cruel
E um vento forte levou os amigos
Para longe das conversas, dos cafés e dos abrigos
E nossa esperança de jovens não aconteceu
E nossa esperança de jovens não aconteceu, não, não"
A oitava música é o clássico "Á Palo Seco", que havia sido apresentada no álbum anterior, porém aqui ganha nova roupagem, o titulo é inspirado em poema de João Cabral de Melo, uma expressão que significa "papo reto", um assunto dito de forma direta e explicita, a queima roupa, ou também um canto a capela: "e eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês". A letra também é autobiografica e traz a necessidade de autoafirmação de apenas um rapaz latino americano, onde onde um sonoridade vizinha, como o tango argentino cai bem melhor do que um blues estadunidense naquele momento de desespero de 1976:
"Se você vier me perguntar por onde andei
No tempo em que você sonhava
De olhos abertos, lhe direi
Amigo, eu me desesperava
Sei que assim falando pensas
Que esse desespero é moda em '76
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português
Mas ando mesmo descontente
Desesperadamente, eu grito em português"
Em "Fotografia 3x4", penúltima faixa do disco Belchior narra a epopeia de um retirante, saído do nordeste para tentar a sorte no sudeste, e as marcas que essa experiência deixa na vida do individuo e também do ouvinte, já que é impossível não se sensibilizar com o storyling passado. Entre Cabarés e praias, cenários que ajudam a compor a narrativa, temos a dor de um romance deixado de lado para uma investida em uma oportunidade de ascensão na vida, e um recado: "Veloso, o sol não é tão bonito pra quem vem do norte e vai viver na rua".
"Eu me lembro muito bem do dia em que eu cheguei
Jovem que desce do norte pra cidade grande
Os pés cansados e feridos de andar legua tirana... nana
E lágrima nos olhos de ler o Pessoa
e de ver o verde da cana.
Em cada esquina que eu passava
um guarda me parava, pedia os meus documentos e depois
sorria, examinando o três-por-quatro da fotografia
e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha."
Fechando o brilhante disco Alucinação, temos a vinheta de saída "Antes do Fim", um breve despedida sob uma batida ao estilo folk, abrindo os olhos do ouvinte a realidade a cerca da vida, que a vida não é tão bela, e que ressalta as principais mensagens ao longo do álbum, aprendam o delírio com as coisas reais:
"Quero desejar, antes do fim,
pra mim e os meus amigos,
muito amor e tudo mais;
que fiquem sempre jovens
e tenham as mãos limpas
e aprendam o delírio com coisas reais.
Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo:
o canto foi aprovado
e Deus é seu amigo.
Não tome cuidado.
Não tome cuidado comigo,
que eu não sou perigoso:
- Viver é que é o grande perigo"
Em Alucinação vemos o que Belchior vivenciou antes e durante o álbum, um incansável misto de sofrimento e afirmação sobre o amor e a busca pelos direitos e a compreensão sobre a arte, além de ser um alerta as armadilhas e feridas da vida enquanto se mantém lúcido ao manifestar a vontade de sonhar e viver, e prosseguir nessa caminhada.
Belchior não é um compositor de fácil assimilação, não é um cantor que agrada a todos, apesar de ser um artista das massas, a toada dessa complexidade artística e pessoal, fazem que o músico seja a personificação da poesia, desde sua estética a filosofia atemporal, sem medo de peitar grandes queridos, sem medo de colocar o dedo na ferida ao falar das mazelas, de forma visceral e seu canto em plenos pulmões, não há como se manter indiferente a poesia forjada no agreste e solidificada na caminhada pela longa estrada da vida. Belchior tinha razão, alucinação é suportar o dia a dia.
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