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O Futuro Não Demora e é dançante com o BaianaSystem

Jeff Ferreira
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Em 2019 reinam os serviços de streaming, e o conceito de disco fica confuso, o que é um álbum? Um amontoado de músicas numa pasta? Ou uma faixa se conectando, de um modo ou outro, com a outra e tendo em seu conceito um fio condutor? Acho que essa segunda opção é a definição mais sensata (e nostálgica), e acho que o BaianaSystem concorda comigo!

Os baianos comemoram dez anos de estrada nos entregando o disco O Futuro Não Demora, um álbum de 13 faixas, politico, reflexivo, dançante e sensacional, que como muito já foi falado trás um batismo de água e fogo, como sugere as músicas homônimas que abrem e fecham o disco, passando por outro elemento, a terra, que faz um brilhante interlúdio que ajuda a mudar o tom do álbum. O disco também faz com que a banda veja Salvador de fora, e não mais de dentro, como nos tramas urbanos apresentados em Duas Cidades, o trabalho anterior. 

E essa vista de fora tem endereço, é a ilha de Itaparica, 13 km das cidade de Salvador, onde o grupo viveu o processo criativo do álbum. A narrativa que o BaianaSystem nos trás é a da travessia até a ilha, a transformação e o regresso, em um futuro que não demora. No entanto o grupo também conta a história da humanidade com esse álbum, desde sua gênese, o aflorar da espiritualidade e a sede por descobertas.

Isso se inicia em "Água", elemento crucial para a vida, a banda celebra o H20 numa pegada mais intimista e menos "quente", com instrumental que emociona e letra que reforça que essa é a salvação, com participação da Orquestra Afrosinfônica, e dos compositores Antônio Carlos e Jocafi:

"O que é que é
Aluvião que cai de pé, corre no chão?

H2O é ouro em pó
No ponto futuro o doce e o sal vão se misturar
Tem pé com pé, tem mão com mão, boca com bo -
H2O é ouro em pó, é salvação"


Na segunda faixa, "Bola de Cristal" o passado e o futuro se encontram, sendo o tempo já ocorrido representado pelo homem de neardental, e o que vai chegar como algo que não dá para prever, e as ações do homem contemporâneo são assimiladas ao seu ancestral das cavernas, a banda nos remete ao passado como se vivêssemos o período pré-histórico.

"Tem quem analisa, tem quem banaliza
Quem passa no Visa, quem faz a divisa
Quem fica de cima e não vê

Fica de cima e não vê
Não tá na TV, não dá pra prever o que vai acontecer"

Seguindo temos "Salve", que trás a participação do amigo BNegão, e aqui o BaianaSystem celebra quatro culturas, que são como quatro religiões, quatro entidades espirituais: a lendária Nação Zumbi, criada pelo saudoso Chico Science, e também pelo saudoso Gira, a Zulu Nation, responsável por integrar os quatro elementos do Hip Hop, Orkestra Rumpilezz, de sopros e percussão inspirada nas Big Bands de Jazz e no Ilê Aiyê, representando os blocos afros do carnaval de rua, e o salve é dado em em tom do ritmo nigeriano do ijexá:

"Quando a brisa do vento sopra a voz de Deus
Povo dançando um passo Ijexá
Telegrafaram nossa mensagem
Glorificando nossa nação
Quando toca Ijexá tu não se cansa
Pedi pra tocar, tu se balança
Zulunation, Nação Zumbi, Ilê Ayê, Rumpilezz"

Na música quatro, uma das mais sensacionais do álbum, a participação fica por conta do mano Manu Chao em "Sulamericano", uma faixa mais politica, que trama um contra ataque a justiça cega, que faz questão de não ver as mazelas que o desgoverno impõe. Aqui a música fala sobre território, depois que o homem nasceu, aprendeu a guerra para rumar seu futuro, criou consciência e espiritualidade, e agora marca território. Um forte canção de resistência que recicla trechos de "Señor Matanza", de Manu Chao:

"Inflama, inflama
Não passa disso, não me engana
Que eu sou sulamericano de Feira de Santana
Avisa o americano
Eu não acredito no Obama
Revolucionário, Guevara
Conhece a liberdade sem olhar no dicionário
Sem olhar no dicionário, ele conhece a liberdade
Vamos que vamos, vou traçando vários planos
Vou seguir cantarolando pra poder contra-atacar"


A quinta canção é a romântica "Sonar" que traz as participações de Edgar e Curumim numa reggae soul, com um influências do funk e menor utilização de recursos eletrônicos, sendo uma música mais orgânica. "Você chegou ao seu destino", esse som marca o retorno da ilha de Itaparica para Salvador, mas é como um sonoar que busca guiar a reflexão humana em suas próximas escolhas:

"Destrava quem me bloqueia
Quem reinstala dispositivos que nos bloqueiam

Impedem a fala, ao contrário da empresa que atrapalha
Toda energia é pra ser de graça
Na próxima vida eu quero ser uma lâmpada de LED
Que espalha luz sobre a face da terra"


"Melô do Centro da Terra", também marca o centro do disco, e traz a voz do Mestre Lorimbau, que ao ritmo do berimbau e da guitarra baiana entoa o mantra:

"No meio do centro da Terra
No fundo do fundo do Mar
No fundo o centro da Terra
No meio o fundo do Mar
No meio do centro da Terra
No fundo o meio do Mar
No fundo o centro da Terra
É o meio do fundo do Mar
No meio do centro da Terra
No fundo do Mar
(No meio do centro da Terra)"   

A mistura do reggae e o dub marcam presença em "Navio", enquanto que Passapusso tem um vocal mais rasgado e a participação de Mestre Jackson. A letra faz homenagem ao Mercado Modelo de Salvador que proporcionou encontros da música africana com a música brasileira e ao mestre Moa, covardemente assassinado por um bolsonarista. A canção na levada do samba reggae fala dos tempos sombrios que o Brasil vive. Um navio que  nos tiras no meio do mar e nos leva rumo ao fogo:

"Vem de Angola e abençoa padre qualquer pessoa

Planta, mas quem manda no navio 'tá na proa

Planta, mas quem manda no Brasil 'tá de boa
Planta, mas quem manda, manda
Meu mundo mágico, colorido e trágico
Quem nunca imaginou, quem se precipitou

Meu mundo mágico, colorido e trágico
Quem nunca imaginou, quem se prejudicou"


Na música oito, "Redoma", o navio angolano se transforma num barco menor para chegar no recôncavo baiano, esse junta ao Samba de Lata de Tijuaçu, e fala sobre a riqueza de estilos musicais e da arte baiana, que apesar de ser ignorada por grandes meios, está ali disponível, enquanto que faz criticas a homofobia e ao racismo:

"É com uma carranca branca, lança aliança
De cores, arco-íris, água de coco, dendê
Ilê ayê, ibarrê, suinga que eu quero ver você
Espuma branca no canto da boca louca
Brisa, riso, briso forte, cravo, dente com sorte
Sobrevivente, pote quente no norte"

Já "Saci", faz uma celebração ao retornar a Salvador e faz uma grande mistura de estilos, com sintetizador responsável pelos efeitos e a melodia que gruda e visa preservar a imagem do Saci, como ma forma de resistência e uma força ancestral, retirando o entendimento pejorativo. E no final a música se torna mais orgânica, para se encaixar na próxima, os riffs se fundem fazendo a transição:

"O Saci Pererê vai dançar de uma perna sóQuem 'tá só, fica junto, quem 'tá junto, fica sóQuem tem dois, já entendeuQuem tem Deus, não fica sóQuem tem dois, já correuO bagulho não dá nóPlow"

Na décima música, "Sambaqui", que leva o nome dos muros que os indígenas construiriam com com conchas e restos mortais de índios falecidos e que se encorporavam a natureza e era visto como como algo energético para a cultura. A batida afro além de resgatar as raízes fala sobre passado, mas sem falar sobre ele, e sim alertando para o corriqueiro do presente:

"Cada cabeça tem seu mundo, 
É como as concha na beira do mar
(Surra de cansanção, surra de cansanção)
Comendo com a boca, comendo com o olho
Comendo com a boca, comendo com o olho
(Surra de cansanção, surra de cansanção)
Cada cabeça tem seu mundo, 
É como as concha na beira do mar"


Uma das faixas mais experimental do álbum é "Arrapuca", com varias modulações vocais, e peso do beat para uma música faixa politica que fala das armadilhas dos tempos sombrios de hoje, mostrando o claro posicionamento politico da banda em relação ao desgoverno, e traz um groove arrastado para uma diversão levada a sério:

"Yo yo, no início é no cry
E no fim goodbye
Conduzindo a fogueira
Em nome do filho e do pai
Arapuca, arapuca, arapuca
Vai ser bem difícil me pegar, recruta
Som na fissura, a procura da cura
Sem medo de altura
E ninguém me segura, desculpa
Granada, sem pino explodindo na cuca
Na caixa do peito sem culpa"

Na penúltima faixa "CertoPeloCertoh" temos o rap de Vandal fundido a um samba reggae e falando de justiça, das ruas soteropolitanas, do certo pelo certo, e valida toda essa viagem do Baiana, agora com o olhar na periferia, onde toda viagem do centro retorna, e a crônica aplicada lembra a incursão pelas Duas Cidades.

"Vandal dispensa introdução
Na cena, sem meus problema
Eu já 'to cheio de problema
Eu amo meus parceiros, esse é o meu problema
Odeio os inimigos, esse é meu dilema
Fuck the police, bitch, sem problema
Um relógio em cada pulso, bitch tipo algema
Vem que vem com calma, cada grama queima
Minha vida é curta pra viver de tema"

Fechando O Futuro Não Demora, a faixa "Fogo", um samba reggae embalante, que traz a ideia do "ninguém solta a mão de ninguém", com a participação do Maestro Ubiratan e da Orquestra Afrosinfônica, e também fala da situação politica que atravessamos "O fogo que queima em você, também queima comigo", mostrando a ideia que estamos no mesmo barco. Por outro lado, a música torna a obra toda atemporal, quando cita: "Olha o que aconteceu", o disco se encerra mostrando que o futuro já é o presente, que a viagem "Já aconteceu com você, aconteceu comigo":

"O futuro não demora

O futuro não demora

O futuro não demora
O futuro não demora
Já aconteceu

Olha o que já aconteceu
O que já aconteceu
Olha o que aconteceu
Já aconteceu com você 

Aconteceu comigo
O fogo que queima em você 
Também queima comigo
Já aconteceu com você
Aconteceu comigo
O fogo que queima em você 
Também queima comigo
Também queima

Já" 

Não sabemos como será o futuro, mas ele não demora, quando menos espera e ele vem e acontece, "Já aconteceu com você". Nessa jornada que o BaianaSystem nós proporciona pela água e fogo, desde o nascimento, criação da identidade e desbravamento por novas culturas, sobretudo o fortalecimento da cultura baiana, o disco nos mostra que viemos do mesmo lugar, e apesar de aprisionados, ou livres, no globo terrestre, nos manteremos juntos quando o futuro chegar, seja em lembranças como "Sambaqui", em luta como em "Sulamericano" ou num "Navio" que busca um porto seguro e Salvador.

Musicalmente falando, o BaianaSystem é que há de melhor na atual fase da música brasileira, pois apresenta, não só nesse disco, mas em sua trajetória musical, um trabalho inovador e incomparável sem deixar de referenciar os arquitetos da música (Salve!) e os distintos gêneros e vibes que só a música proporciona. O Futuro Não Demora é um disco que passado anos ainda estaremos falando dele, mesmo o escutando no futuro, o ábum não data, é atemporal:

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