O grupo Jigaboo em 1999 lançou seu clássico disco As Aparências Enganam, pela Virgin Records e produzido pelo Rick Bonadio, torcendo o nariz de muitos do movimento, devido à proximidade com uma grande gravadora. Vale lembrar que quem montou o Jigaboo foi Bonadio, juntando os artistas que tinha em seu portfólio para o projeto, assim DJ Deco, Suave e P.MC integraram o Jigaboo.
O grupo mesclava toda a bagagem de PMC, que já havia feito vários trabalhos com o DJ Deco anteriormente, e vinha numa linhagem de rap consciente, como no álbum PMC e os Poetas de Rua, de 1996, com o estilo debochado do rapper Suave, que vinha do underground com linhas carregadas de sarcasmos. O Jigaboo também flertava com o rock, e nesse álbum trouxeram Charlie Brown Jr e o Surto para participarem.
Outras participações foram de Tio Fresh, do SP Funk, e de MCA, do Doctor’s MC’s e tinham letras que transitavam entre o lírico do underground e o gangsta que era o mainstream da época. As aparências Enganam é um ótimo disco de rap e vale a pena dar uma conferida nesse clássico:
O disco abre com o bate cabeça “Quebra Tudo”, que faz um panorama sobre as festas e atitudes imaturas de brigas e consumo descomunal e drogas, e as consequências que essas brisas erradas trazem.
"Quebra tudo que tiver na sua frente
arregaça, detona de maneira diferente
Não vou usar meio termo, nem meia palavra
minha paciência ta esgotada.
Não vem que, não tem que
dá lição de moral na gente.
To aqui e resolvi curti " E dai?"
Não devo nada pra ninguém ai"
Na sequencia tem o clássico “Corre Corre”, na versão Hip Hop Mix, aqui Suave e PMC, munidos de trechos da música “Policia”, do Titãs, criticam a abordagem policial, a truculência e a violência, regado de bom humor e bastante peso nas ideias.
"Mais uma vez ela veio como que não quer nada
Botou muito terror, distribuiu muita porrada
Muito grito, muito choro na vizinhança
A tropa do terror em forma de segurança
Vamô vê hoje quem vai ser o escolhido
Seja quem for tá fodido
Pegou o RG, puxou a minha capivara (sai fora negão!)
E o tapa rola na cara"
Muito grito, muito choro na vizinhança
A tropa do terror em forma de segurança
Vamô vê hoje quem vai ser o escolhido
Seja quem for tá fodido
Pegou o RG, puxou a minha capivara (sai fora negão!)
E o tapa rola na cara"
Nos discos de rap mais antigos, havia uma conexão maior com o hip hop, e os grupos dedicavam uma faixa ao DJ, para que esse fizesse sua performance. O Jigaboo seguiu esse respeito com a cultura, e assim temos a faixa “Deco Murphy Na Área”, com DJ Deco riscando nos toca discos.
Na música quatro o grupo vem mais debochado e sarcástico para abordar o tema “Fim Do Mundo” com originalidade, assunto inexplorado no rap BR, mas que devemos entender o contexto de sua relevância, no final dos anos 90, devido a uma antiga previsão de Nostradamus, o mundo acabaria na virada de 1999 para o ano 2000, justo no período que o álbum foi lançado e divulgado.
"Faltando não sei quantos dias para o fim do ano
Agora é nós, é nós, é Nostradamos
Que veio dizer que o mundo vai acabar
Então pera ai que eu vou aproveitar
Eu tenho medo de morrer, tem muita coisa que eu ainda não fiz e tenho vontade de fazer
Por exemplo, xingar meu patrão
Reclamar do salario, da promoção
Eu quero ser demitido, convidar a secretária pra vir jantar e transar comigo
Eu quero ser cara de pau, desmascarar um papai noel nesse natal"
Em seguida “Duro De Matar” sobe o tom e manda uma direta para MC’s faladores que não vivem o que falam e se preocupam com a carreira alheia, no melhor estilo diss mas sem citar nomes, apenas reforçando a qualidade técnica de cada MC.
"que hip-hop, teu estilo não e dessa origem
era melhor se tua mae ainda fosse virgem
de fato eu acho que teu parto foi anal
você nasceu porque o aborto ainda é ilegal
e é por isso que eu me acho o tal
eu faço rap desde que cortaram meu cordão umbilical
e não preciso de conselho de nenhum pentelho
se eu quero perfeição é só eu me olhar no espelho
eu boto você de joelho pra pedir perdão,
eu faço com você o que Caim fez com o irmão"
Charlie Brown Jr encosta na faixa seis, “Vai Pirar”, pra falar sobre a mistura na música alternativa, e como Chorão versa um é bom, dois é pra ficar melhor, e assim falam sobre a mescla de estilos, do rock ao rap, passando pelo ska, hardcore, reggae, raggamuffin e demais estilos que se conversam e se completam.
"Tem espaço sim
Pra muita gente
De dá idéia resultou
Rock, rap... O que rolar
Combinar, combinou
Puta som! Que da hora!
Agora começou, vai ser ruim de parar
Mano, eu tô te avisando
Pra você se ligar
Ska, hip-hop, reggae... É o que há
Muito estilo e boa música
Pode acreditar"
Vídeo clipe de "Vai Pirar"
Na
faixa sete os rappers disparam têm “Mc's
Na Mira” mandando a
letra para o que o grupo julga ser falsos mc’s, aqueles que “não tem coragem de
botar pra fora o que realmente é verdade”, a critica parece ser feita a rappers
e funkeiros do meio pop que se dizem oriundos do hip hop. O Jigaboo também faz
seu desabafo aos jornalistas que apenas fazem criticas afim de diminuir o rap.
"Tem muita gente ai falando que é do movimento
Só porque tem cd gravado acha que tá dentro
Agora eu bota vocês pra fora da TV
Com um tiro que atravessa o Rodolfo e mata o Et
Só não mistura o teu funk com meu rap no teu deck
Eu canto ao vivo e você só faz play back
Não me conhece então acaba esse seu thchurururu
Suave pega o microfone e bota no teu cú"
Na oitava música tem a participação da banda O Surto, que soma no rapcore “Para De Falar”, ótimo instrumental orgânico mesclado os riscos no vinil do DJ Deco, abordando a falácia de um mano que se diz favela para a playboyzada e tira onde de playba com a favela, até que bateu de frente com os, a música fala por si só:
"Faltando tipo 10 minutos assim pra uma da manha,
Nem te falo quem eu vejo ali na rua hamm!
Aquele cara que não tem nenhum controle na boca,No style de jaqueta, bermudão e toca,tirando onda ali
Onde só tem paga pau vou cola pra ver se ele me
Reconhece e tal...Eaê tá lembrado de mim sangue bom?não!
Vou refrescar sua memória então..."
Aquele cara que não tem nenhum controle na boca,No style de jaqueta, bermudão e toca,tirando onda ali
Onde só tem paga pau vou cola pra ver se ele me
Reconhece e tal...Eaê tá lembrado de mim sangue bom?não!
Vou refrescar sua memória então..."
A música de número nove é “Agora É Sua Vez” que traz MCA do grupo Doctor Mc's e Tio Fresh, do SP Funk, no melhor estilo cyphers (isso em 1999), cada MC usa seu tempo para mandar o verso que desejar. A variação de flows e timbres de vozes, a medida que os participantes vão se alternando é o que o destaque para a faixa, trazendo aquele clima de banca, de maloqueiragem.
"Agora fica com seu ouvido bem aberto
Você vai toma um sacode só pra fica esperto
Do barroco mineiro ao rap brasileiro
Que se foda eu vou canta de galo no seu terreiro
O picolé de asfalto vai derreter na sua boca
Palavras amargas na sua goela a força
Quiseram fazer de mim negão arrasado
Mas continuam por ai tudo fodido e mau pago"
Do barroco mineiro ao rap brasileiro
Que se foda eu vou canta de galo no seu terreiro
O picolé de asfalto vai derreter na sua boca
Palavras amargas na sua goela a força
Quiseram fazer de mim negão arrasado
Mas continuam por ai tudo fodido e mau pago"
No som “Doidera” o grupo faz uma advertência ao uso incontrolável de drogas, principalmente as de grande danos como a cocaína. O alerta é no estilo Jigaboo de rimar, debochado, sarcástico e passando uma mensagem consciente.
"Quando eu morrer não vou ser enterrado,
Quero ser apertado, e fumado igual baseado
Detonei minha traqueia
Agora eu viajo mais do que executivos numa ponte aérea
Meu medo é ficar só,
Ainda bem que quando a gente é cremado a gente vira pó
Do meu nariz eu tomo conta (de ponta à ponta)
Se for uma overdose eu seguro a bronca
Já te falei eu não sou moleque
Acho que de tanto toma doce piorei a minha diabete"
Até certo tempo atrás o rap era mais fechado, e pouco flertava com as mídias. Em 1999, o termo mídia se resumia a TV, rádios, jornais e revistas de grande circulação, pois internet não tinh. No rap “Mídia Ou Hip Hop” é abordado sobre a relação entre a cultura hip hop e os meios de comunicação, como ganhar dinheiro com rap sem vender seu produto? Como fazer algo autentico e de coração se vai ser vendido ou consumido por outro público?
"eu já falei que não tem nada a ver
você pensar que o rap pra ser bom não pode vender como que eu vou mostra meu trampo eu canto não canto não fica no canto garanto e chego arrebentando tudo quebrando tudo usando as mãos como se eu fosse surdo mudo"
Na faixa doze, Suave rima em “Qual É A Cor?”, um desabafo do rapper, que é loiro e tem olho claro, e por não sofrer racismo e ter certos privilégios devido à aparência, o que gerou revolta em rappers mais radicais, com essa letra, Suave desabafa e diz que apesar de sua cor, tem seus dilemas, e que o importa pra ele são as rimas, e não a cor do rimador:
"Agora vou contrariar vocês mais uma vez,
preto ou branco não importa,essa é pra vocês.
Seja qual for a cor da pele vai passar Sundown,
as rimas causam queimaduras de terceiro grau.
E quem quiser me derrubar,melhor ficar esperto,
eu nunca durmo quando deito deixo o olho aberto.
E desta forma eu sempre sei quem é que se aproxima,
eu rimo mais do que policiais fazem chacinas."
"Continua Sendo Nosso" é faixa treze, e tem participação na rima do DJ
Deco, aqui o clima volta a ficar tenso, tanto em beat quanto em atmosfera da
música, pois o assunto volta a ser a violência policial.
"Sai de Minas, onde é meu lugar
Já mando um alo pros manos lá de BH
No Brasil, toda essa raça tem moral
Distrito federal, São Paulo Capital
Falar do norte e do Sul é compromisso
Rio de Janeiro também sabe muito bem disso
Pensa primeiro se quiser vir me tirar
Não tenho que aturar, juro que vou revidar"
A música de número catorze, “Tá Pensanduquê?”, na verdade são duas em uma, ambas rimadas por Suave, na primeira um freestyle em quatro idiomas, o MC vai do português ao francês, passando pelo espanhol e inglês. Na virada do beat, a segunda parte trata-se de uma diss para o rapper Gabriel, o Pensador, passando pelas obras do artista a fim de provoca-lo.
"E vamos ver quem se garante mais
Eu dou um trago no cachimbo mas não vou deixar você em paz
Até meu CD ser lançado e divulgado
Agora é tu que tá na dança do desempregado
Você nem sabe fazer rap direito
Se for tentar, morre com a tabua de passar no peito
E nossa vida continua
O teu CD quebra-cabeça mas foi o Suave que quebrou a sua"
Na música “Geral” uma nova critica sobre a policia, dessa vez sobre as abordagens policiais abusivas, as chamadas “geral”, com bom humor o grupo fala sobre a ação e o quão constrangedor é esse momento, que pode ser evitado, mas por uma questão de racismo e apartheid social são constantes na vida de jovens.
"Depois ainda vem dizer que eu falo demais
eles fodem sua vida e fica tudo em paz
rolo varias paradas há pouco tempo atras
filho da puta nenhum lembra mais
Naquele dia, total agonia
um grito "Fudeu" de longe eu ouvia
os cara que eu conheço no muro bem ali
mas não vou parar de andar, eu moro aqui"
A música “Realidade” leva nome de projeto que P.MC desenvolvia com os jovens desde 1997, e na ocasião foi composta pelo rapper e 42 adolescentes das unidades do Complexo do Tatuapé. A música foi muito executada nas rádios do segmento em todo país, como a 105 FM, de Jundiaí, no Programa Espaço Rap, e os próprios internos retratam a vivencia no lugar e trazem um refrão que é um pedido para que ouça-se a voz dos jovens sem condena-los antes:
"Rebelião ibope na televisão
muda de canal não aguento mais ver isso não..
é sempre assim, bem assim que acontece
ou você condena ,ou você esquece
gente que nunca correu atrás de nada
e tem o que quer sempre de mão beijada
classificando a mulecada de marginal
11,12,13 anos acha que é normal,
coloca dificuldade,em todos os sentidos,
diz que a maioria ali dentro tá perdido"
A "Favela É Favela" é penúltima faixa onde DJ
Deco volta a rimar e novamente o clima fica denso, com beats graves e potentes,
piano marcando a tensão e letra, que como titulo sugere, aborda a rotina nas
periferias, lembrando que o estilo e educação da favela é diferente da
playboyzada, e que o clichê de querer se passar por morador do morro será
cobrado.
"Você pediu, resolvi atender
O resultado agora é imprevisivel
Tentei mudar, amenizar, favorecer
Tenho que reconhecer que foi quase impossivel
E do começo quando resolvi chegar
Sinto uma forte negatividade pairando no ar"
O álbum finaliza com a música “Corre Corre” essa na versão Radio Edit, mais rápida e remixada, com maior peso das guitarras, a letra é a mesma, narrando o temor de encontrar com uma viatura na calada da noite.
"Corre, corre, o Jigaboo tá sendo procurado
Policial tentou seguir mas foi atropelado
E ele acha que eu tava dentro do Opala
Por isso qui a minha roupa é a prova de bala
Eu tô com medo de ser confundido
Tem muito loiro de olho azul filho da puta que virou bandido"
Vídeo clipe de "Corre Corre"
Não há
como falar do Jigaboo sem citar a questão racional, o grupo, miscigenado,
formado por dois negros e um branco chamava a atenção. Suave trouxe à tona essa
questão em suas letras, mas apensar de ser um rapper branco e de olho claro não
disparou discurso de “racismo reverso” ou qualquer coisa do tipo, trazia um
desabafo para que primeiro ouvissem seu som e depois se ligassem em sua cor.
Acredito que Suave tá ligado que o rap é preto, tanto que já versou sobre ser
negro por dentro, como forma de justificar seu talento acima da média,
reconhecendo a origem da cultura, em outro verso Suave lembra que” branco de
olho azul que rima bem só tem um”, esta saber se falava do Eminem ou de si
próprio.
Não há
duvidas que As Aparências Enganam é um ótimo disco de hip hop, em toda sua
essência, trazendo a versatilidade de P.MC que é b.boy e MC e cede uma faixa
para o Dj Deco fazer sua performance e mostrar todo seu potencial, além do estilo
sarcástico de Suave, que também traz muita técnica para o álbum. O Jigaboo dava
inicio a uma nova perspectiva do hip hop brasileiro que buscava maior
sofisticação nas rimas e alternância nos temas a serem tratados. Tudo isso
buscando a referencia de que veio antes e influenciando muitos que vieram
depois.
Apesar da
produção de Bonadio, o lançamento pela Virgin Records, toda a promoção do
álbum, e posteriormente Suave tocar o projeto Dogão, que muitos criticaram por
ser uma proposta comercial e descompromissada, o Jigaboo apresentou um
carreira, e principalmente nesse álbum, um compromisso com o rap, com real
essência do hip hop, que foi divertir, informar, denunciar e protestar.
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