Uma mochila nas costas, a rua como cama, o hip hop na veia, uma vida para resistir, fatos para relatar e um Universo em Crise, são os elementos que temperam a obra de Jessé, vulgo Sé. Artista de rua, artesão, bisexual, rapper e uma das mentes mais criativas e originais da nossa música.
Viver
no mais que mais mata por transfobia, com uma policia racista e um
governo fascista por si só já é embaçado, ainda
mais sendo negrx, periféricx e LBGT+, vivendo nas ruas desse país, esse
é o status de Sé, que mesmo sem saber como será o amanhã, pois está
resistindo contra quem fere sua existência, se mantém no front, com
rimas afiadas e uma obra sensacional.
Universo
em Crise aborda todas essas questões em doze faixas produzidas pelo
próprio artista, que teve que dar seus pulos
nas ruas pra confeccionar esse trampo, que foi cuidadosamente
elaborado, assim como os artesanatos que faz e vende. Recentemente fez
feat na música “Vinho”, do álbum Guia Prático de Como Fazer Inimigos, do
Siloque, e ali despertou interesse de muitos em sua
obra, sua poesia marginal contestadora e sem amaciante, dava indícios
de como viria para seu álbum.
O disco começa com uma “Intro”, um cartão de visitas onde a Sé, ou o Sé (chame como quiser!) dá a letra dedicando
o álbum a todos que estão nas ruas, artesãos, malabares, e clama pelo respeito a comunidade LBGT+.
“Boa pra nós, licença aqui, licença aqui
Bixa Antifa nos falantes, certo?
Diretamente de lugar nenhum, das ruas do planeta Terra
Eu Sou a Sé, ou o Sé
Como quiser bebê”
A primeira música é “Cicatrizes”, onde poesia é extraída do fundo d’alma dx artista, que narra sobre as marcas
impressas pela vivência nas ruas de de um país fascista, racista e homofóbico.
“Junte os cacos que sobraram
Edificar e vencer
Pois o tempo irá passar
E a vida vai perecer
Diz o que você vai deixar?”
A próxima faixa é “Humanidade é Mato”
com beat suingado e envolvente Sé lembra que mesmo com os perrengues da
vida
itinerante que leva, tendo todos os motivos para ser pior que seu
opressor, se mantém firmão, na esperança de que amanhã seja uma pessoa
melhor do que é hoje, como rima. Mas também não deixa passar batido e
fotografa a desumanidade daqueles que tromba em
sua caminhada.
“Busco respostas bem além do horizonte
E que amanhã eu não seja a mesma de ontem
Enterrando rastros aos montes, não em terra santa
Tô na fuga antes que esse vírus me encontre
Tipo praga na plantação
Humanidade é mato, busque seu lado bom”
Na faixa quatro, “Zica Hard Core”, Sé de “meia na canela” traz aquela porrada sonora, num beat sujo e punk (com
microfonia e tudo!), e entona o mantra “Respeita as bixas!”.
“Meia na canela, Zica Hard Core
Bate cabeça foca na pista,
Ritual de descarrego
Atitude positiva
Meia na canela, Zica Hard Core
Chave, chave, chave enquadro de policia
Vocês não vê que dá desgraça?
É o bonde das antifas
É o bonde das antifas
Respeita as bichas”
Seguindo tem a faixa “Corra”,
onde o artista constantemente tem que se esquivar dos perigos das ruas:
a policia,
os fascistas homofobicos e religiosos conservadores que só aceitam sua
própria hipocrisia. Com flow mais cantado e instrumental profundo e
marcante, essa é uma das canções mais bonitas e reflexivas do álbum.
“São as malditas armadilhas do sistema
Corra, corra, corra, corra, corra, corra
Que os canas que te pegar
Corra, corra, corra, corra, corra, corra
Que os nazi que te caçar
Corra, corra, corra, corra, corra, corra
Que o pastor quer te crucificar
Corra, corra, corra, corra, corra, corra
Mesmo sem saber onde chegar”
Em Universo em Crise, Sé também lembra da “Meritocracia”,
palavara que ganhou fama na direita hipócrita como forma
de derrubar o “vitimismo”, que eles chamam de “mimimi”. Mas a música
bate de frente com essa prática covarde, e reforça que os playboys
começam muitos metros a frente na desleal corrida.
"Mas as neuroses voltou
E voltou como quem não quer nada e leva tudo
O Universos em Crise gerando conteúdo
Conteúdo, que academia adora estuda-lo
Lotar os status, caralho sou burra mas dou trabalho
Pós-graduada nas ruas e finge que não entendeu
O discurso, bonitão, e o corre desmereceu"
“Amestisa” é o que parecia ser a love song do disco, até Sé virar o beat e narrar o cotidiano nas ruas, a violência
da homofobia, preconceito da sociedade e repressão brutal e fatal da policia enquanto tenta sobreviver, abstrair e se pá amar.
"Você acha que vou sofrer por amor?
Vários corres na rua pra fazer, muitos buchichos
pra resolver
Deixei as facas na mochila por que eu não sei qual
que vai ser
Cumprimentei os malabares no farol
O mangueio tava foda mó sol!"
Em “Pisa Fofo”
Sé chega truculento num trap psicótico, com agudo do piano marcante
enquanto taca fogo no sistema,
disparando suas criticas contra a sociedade, mas não trata-se de um
repeteco com mais do mesmo do que já foi dito nas outras tracks, aqui
entram na mira também os MC’s de ego inflado que vivem apenas para hype
hop.
"Foda-se a polícia, foda-se o sistema
Fodendo o meu povo preto
Sangueando nos guetos, jorrando onde eu me deito,
rua!
Marielle Presente! Mães de Maio com os filhos
ausentes
Genocídio da polícia militar, só rajada na nuca e
no peito
Rap game é meu ovo, reproduzindo uns bagulho zuado
Respeita as minas, as bichas, as putas,
Se coloquem-se no seus lugares arrombados"
Na música nove, Sé baixa os BPMs e relata num trap o “Devaneio”
na caminhada na selva de pedra, traçando um paralelo
do que é ou não sucesso, enquanto caminha por lugares e tem vivências
que podem ser considerada por muitos certezas de fracasso, mas que faz a
poeta seguir firmão e de cabeça erguida.
"Tenho tão pouco pra oferecer
Só uns versos sinceros, será que pode ser?
Acreditar em seus sonhos não basta pra vencer
Tem que correr atrás, fazer acontecer
Seguir com fé, na humildade, sem tirar ninguém
Libertar tua mente, não ser mais um refém"
Em “Dois Lados da Moeda”,
faixa repleta de ótimas referências a música brasileira, Sé traça o
paralelo de estar
no corre pelo verdadeiro hip hop, e sofrendo por isso, com aqueles que
surfam nessa cultura sem responsabilidades, e ainda tem o aval do poder
no Brasil, devido a sua classe social. Destaque para o flow cantado,
delicioso e que desliza sobre o beat hipnótico
ajudando a manter a reflexão na narrativa.
"Dois lados da moeda, só pra mim
Tira essa mão limpa da minha taça de vinnho
Fodendo os bico homofobico, e rindo sozinho
Bati minha cabeça quando cai do ninho
É sujeira no jogo, mas aqui pega fogo!"
“Mais um Trago Sem Sentido”,
penúltima faixa do álbum, e como nome sugere, Sé aborda a relação sobre
as drogas,
no quanto é uma válvula de escape pra encarar os perigos da rua, e o
quanto é um perigo de que não se pode escapar, então todo cuidado é
pouco. O beat é mais ameno e convida para a reflexão sobre as ideias que
saia do flow cantado, até virar para praticamente
um bumbo que bate acelerado, como um coração preste a entrar em
overdose, e de um fundo um ruído tenso, que deixa mais densa as ideias
de Sé, que hora saem mais altas em forma de poesia.
"Mais um trago sem sentido,
pra saber se ainda tô vivo
Se ansiedade não matar,
a depressão acaba comigo
Não entupo o nariz,
mas ainda encho o pulmão de fumaça
pra ralar os pensamentos, sempre com mortos,
confesso que já beijei a lata, tanto"
Fechando o disco temos “Herxis Decapitadxs”,
música que já havia ganhado as ruas antes das demais faixas. Aqui
a poesia marginal, a emoção e a destreza são os pontos altos, ao lado
da contundência. Sé chega pesado em um beat com elementos de trap e
ideia de milgrau, como o original rap nacional é, e tem que ser, uma
verdadeira música de protesto e que merece ser lembrada
ao lado dos hinos do nosso hip hop.
"Ditadores vão cair, cabeças rolarão sem luto
Verme passando pano pra cultura do estupro
Vivem de tributo, querem nossa cabeça a prêmio
Vai ter luta, não vamos dar nosso lombo pra senhor do engenho
Crianças morrem nas ruas, as monas pagam veneno
enquanto você bosteja o índice vai crescendo"
Universo em Crise,
dx Sé, é um grande disco em todos os aspectos, e isso é um fato.
O que faz desse trabalho uma obra tão grande, além de ter sido
produzido na rua, como o hip hop nasceu, sem muito recurso, de coração,
mente, corpo e alma, tem também o lance da bagagem,
Sé narra o que vive, não fantasia e nem romanceia as paradas, esse
álbum poderia nunca ter existido, só as anotações, com fragmentos de
letras, numa caderno velho, ao lado de seu corpo, em uma rua qualquer do
Brasil. Sé é sobrevivente, é a poesia em forma
de pessoa, é resistência, é atitude, Sé é uma ideia. Força!
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