Cores e Valores é o filho caçula dos Racionais MC's e é também um trabalho pouco compreendido pelos fãs do grupo. Lançado no dia 25 de novembro de 2014, o álbum põe fim a uma espera de 12 anos por músicas inéditas e marca os 25 anos de trajetória de Ice Blue, Mano Brown, KL Jay e Edi Rock
O disco abre com "Cores e Valores" com beat pesado e mais eletrônico e "poluído" bem diferente do que os Racionais apresentaram em seus últimos trabalhos, a falta de sample, por exemplo, com menos referências ao soul e funk, porém a inconfundível levada e temática dos Racionais MC's, com produção de Mano Brown e do DJ Cia:
"Conspiração funk, international in
Jamaica Queens, Fundão Sabin
Função pra mim, se Deus me fez assim
Fechou, neguim, eu trouxe um do verdim
Nuvens e ovelhas negras desde sempre acompanham-me
Na fase negra bem, era nós também sim
Na linha pontilhada vou indo, indo, indo
Na terra cujo herói matou 1 milhão de índios
Pelas marginais os pretos agem como rei
Se não gostar de nós, tanto faz, tanto fez
Me degradar pra agradar vocês? Nunca!"
Em seguida temos "Somos o que Somos", que continua a faixa anterior, essa rimada pelo Ice Blue, que nesse álbum tem um destaque maior do que nos últimos trabalhos do Racionais, a lirica de Blue implica em algo introspectivo que repensa a vida loka, principalmente quando se está só, momento em que a tristeza insiste em abalar, ao passo que o malandro filosofa sobre o amor:
"Preto e branco como jogo de xadrez
Seu escuro da pele é sedução, meu desejo
Me exige abusar do vermelho
Bens materiais, não pagam o seu beijo
Cores reais, no rosa amor eu vejo
Viajo no verde no degradê do céu
Inocenta os parceiros do banco dos réus
Porque"
A faixa 3 é a "Cores e Valores / Preto e Amarelo", com apenas 37 segundos de duração, rimada pelo Negreta, do grupo Rosana Bronks, e faz uma alusão ao fatos dos pretos poderem gastar, e fala das cores, principalmente o preto e o amarelo, que são os coloridos das grifes de favela, que vestem muitos grupos, principalmente os Racionais. Produção de Mano Brown e DJ Cia.
"Negreta tá na pista, cê não quis acreditar
Visto preto e amarelo, a gente se identifica
Cosa Nostra é a zika, pode vim qualquer teste
Desde a fria do Sul ou o calor do Nordeste
O que tá tendo no momento é libra, euro e o dólar
No jet de Corolla nós também tá afim
O certo é certo é, tiozin"
A exemplo da faixa anterior, a de número 4 é outro tiro rápido, com apenas 24 segundos "Trilha", é um instrumental que vem para dar um break, e mudar o tom do disco, destaque para o enquadro da sirene dos "homi" que late nesse beat, ainda cabe espaço para o característico:
"Somos o que Somos,
Somos o que somos"
Na quinta música (ou terceira vinheta), "Eu te Disse" aborda o crime e o romance, o glamour e a precariedade em seus 54 segundos:
"De algum lugar da América do sul (sul)
Sobe o morro (quem, quem?)
Com classe e elegância vem (vem) no destaque
Swing e chocolate, preta cadillac
Nem caro nem cost, nem ferrari ou lacoste
É o veneno da mamba, tem o samba de morte"
"Preto Zica", música que ganhou vídeo clipe e traz uma abordagem mais próxima dos Racionais dos álbuns anteriores, principalmente dos discos Chora Agora e Ri Depois, que compõem o álbum Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Nessa música é utilizado sample de Ray Charles, da música Feel So Bad, do álbum Volcanic Action of My Soul, do ano de 1971.
"Preto zica, truta meu, disse assim
"Mó fita, mó treta! " o truta meu disse assim
Veja quanta ideia, bonitão
Os truta aqui tão, no mó conchavo
Torcendo por você e calculando seu cada centavo
Ficaram cego e a meta é tomar seu lugar
Intravenosa, venenosa, via jugular"
Na faixa 7, "Cores e Valores/ Finado Neguin", aqui a faixa segue no tempero "Cores e Valores" e traz o personagem "Neguin", que não está mais entre nós, e seguindo a ideia de relacionar cores do cotidiano com os valores envolvidos, aqui é lembrado que as cores preto e laranja são usadas pela grife da Vila Fundão, exemplo de empreendedorismo na quebrada:
"E por um gosto pessoal do finado Neguin
Laranja e preto decidiu, se é assim é assim
Honra branco marfim, vinho tinto, carmim
Quem? Quem permitiu?
Deus dirigiu esse filme
Dizem: Crime é o Rap
Dizem: Rap é o crime
Você diz, você decide
O resto só coincide"
Indo para o lado B do disco temos a faixa 8, "Eu Compro", que fala sobre o poder de consumos dos negros ao passo que traça um paralelo com a desigualdade social no Brasil. A música tem participação de Helião do RZO, e tem o Ice Blue a frente, e vem como um cartão de visitas de uma parceria que se repetirá outras vezes, talvez até em um disco:
"Olha só aquele shopping, que da hora!
Uns moleques na frente pedindo esmola
De pé no chão, mal vestido, sem comer
Será que alguns que estão ali irão vencer?"
Seguindo temos o som "A Escolha Que Eu Fiz", aqui é a vez do Edi Rock roubar a cena, o beat é denso, com uma guitarra bem sinuosa e começa com uma sirene, onde o mano narra uma cagada feita, escolhendo por um caminho errado, e filosofa sobre o que te levou e o que será de ali em diante:
"Foi a escolha que eu fiz
Agora o sangue que escorre não apaga, não é giz
Eu vacilei, não olhei
Tinha um pé ali atrás no balcão quando enquadrei
Entrei suando, era a deixa
Cada, cada prejú, o seu é a queixa
Eu me fodi de verdade se pá não vai dá
Não vou ver nem as grades
Que merda é essa que eu fiz
Eu não ouvi o meu parceiro como eu ouço o juiz, infeliz
Respire fundo, otário
Violento e desnecessário
Dói pra caralho e agora não é hora de rezar e brisar"
Uma música emblemática nesse disco, sem dúvida, é "A Praça" que relata a confusão no show dos Racionais MC's na Virada Cultural de São Paulo, em 2007, num evento realizado na Praça da Sé, esse evento tirou o grupo de atividades ligadas a prefeitura por 6 anos, que terminaram em 2014 com um mega show para mais de 100 mil pessoas, momento em que o grupo deu a volta por cima.
"Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura
Uma arma na cintura, o sangue na moldura
Uma farda, uma armadura
Um disfarce, uma ditadura
Um gás lacrimogênio e algema não é a cura, é luxúria
Uma censura tentaram e desistiram
Pularam atrás da porta, filmaram e assistiram
Pediram o nosso fim, forjaram uma lei pra mim
Tiraram o nosso foco dos bloco e o estopim
Tentaram eliminar, pensaram em manipular
Tentaram, não bloquearam a força da África
Chamaram a Força Tática, Choque, a Cavalaria
Polícia despreparada, violência em demasia!"
O "Mau e o Bem" tem um pegada de R&B, cantada por Edi Rock, essa música, de fato, comemora os 25 anos do grupo, como rapper cita no final da faixa. Nessa canção alguns fatos da trajetória dos racionais são mencionados, como a União entre Edi Rock e KL Jay em meados de 80 e qualquer coisa e posteriormente a junção com Brown e Blue.
"Pow pow pow, meu destino agora sou
Vou sem capacete, sem placa e sem retrovisor
Quem me aguarda?
Quem me espera?
Não me desespera pelos morros que eu passei
Fora da lei, eu sei, perdi e ganhei
Errei e acreditei numa luz que eu enxerguei
Kl Jay, DJ, Vila Mazzei, o Jó me apresentou em meados de 83
Dançando break a parceria fechou, formou
Mais uma dupla de são paulo se aventurou"
"Você Me Deve" é a faixa 12,e já tinha uma versão nas ruas, a música "Função", do Possemente Zulu, do Rappin Hood, aqui Brown repete o verso utilizado. Num beat de rap pesado com ótimas referências do funk e soul, e as funções dos anos 80:
"Companheiros pedem sua voz ao microfone
Por mim, só satisfação, tamo junto, isso mesmo, tru
Rappin' Hood, Lakers, eu também sou Zulu
Família unida, esmaga boicote
Ê, bora, Pixote, Hollywood não espera
Nova era, os pretos têm que chegar
Rappin' Hood, Lakers, eu também sou Zulu
Família unida, esmaga boicote
Ê, bora, Pixote, Hollywood não espera
Nova era, os pretos têm que chegar
Tem que ser assim, tem que chegar, por que não?"
Na música 13, Brown narra sua adolescência sob o ponto de vista da diversão, como um jovem negro e periférico curtia os bailes no Brasil nos anos 80, "Quanto Vale O Show"? é a pergunta sobre se o espetáculo vale o dinheiro minguado.O instrumental chama a atenção para o pandeiro, que é inserido na introdução da música, relembrando as origens de Mano Brown como sambista, e tem um marcante riff de guitarra, o sample é de Bill Conti, com a música "Gonna Fly Now", tema de Rock, o Lutador, e também contém sample de Silvio Santos, em alguns de seus programas.
"83 era legal, sétima série, eu tinha 13 e pá e tal
Tudo era novo em um tempo brutal
O auge era o Natal, beijava a boca das minas
Nas favelas de cima tinha um som e um clima bom
O kit era o Faroait
O quente era o Patchouli
O pica era o Djavan
O hit era o Billie Jean
Do rock ao black as mais tops
Nos dias de mais sorte ouvia no Soul Pop"
O auge era o Natal, beijava a boca das minas
Nas favelas de cima tinha um som e um clima bom
O kit era o Faroait
O quente era o Patchouli
O pica era o Djavan
O hit era o Billie Jean
Do rock ao black as mais tops
Nos dias de mais sorte ouvia no Soul Pop"
A penúltima música é "Coração Barrabaz", com sample de Bandits of Love, com o som deixa de 1977, aqui a faixa funciona como uma especie de intro para a proxima música, ao longo dos 1 minutos e 23 segundos uma voz grave e distorcida, declama por sobre a base:
"Você feliz por aí e eu aqui na prisão que eu mesmo construí, sobrevivo
Dentre os muros do desejo eu vejo dor, calúnias, mágoas no ventilador
Um abismo, paixão e egoísmo
Guerra entre os lençóis
Veja só o que sobrou de nós"
O Disco fecha com a belíssima "Eu Te Proponho", que tem produção do DJ Cia e já é mais parecida como o trampo de Brown em seu disco solo, Boggie Naipe, mesclando o funk e soul com o rap, num clima de romance, de amor proibido, que faz várias referências a grandes clássicos da música brasileira, e finaliza aqui a opera rap que foi o álbum Cores & Valores:
"Dou a minha mão e confia em mim, eu
Quero te mostrar um mundo novo, só meuPeço discrição por mais de mil motivosNão por nada, um pouco possessivo, perdãoAlgo que me orgulhe para que eu mergulheNesse corpo absurdo, nesse porto inseguroEu posso ser seu escudo no claro ou no escuroE é eterno enquanto dure e através do muroE se moiar? E se o júri ter provas contra nóiz?Tem além do horizonte, vida nova, outro arVem, vem..."
A espera de doze anos resultou num trabalho de cerca de 30 minutos, o grande público esperava mais, em relação ao tempo de duração, talvez um novo registro duplo para satisfazer os anseios, mas vale ressaltar o óbvio de que o ano de 2014 não é o de 2002! Quase quatro anos depois do lançamento de Cores e Valores, a percepção sobre a sociedade imediatista se mantém: a molecada quer algo rápido, para consumir sem perder muito tempo e depois descartar, tudo é liquido e escorre pelos dedos, nada mais é sólido e se perdura por anos, ao passo que a velha guarda, com suas responsabilidades no lar e no trabalho, pouco tempo tem para ouvir e assimilar uma obra complexa. Grandes músicas, que trazem discussões e reflexões, imputadas em um lado B de grandes álbuns, de grandes artistas, acabam esquecidas e não tendo o devido valor, tudo isso devido ao maldito hype!
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